quarta-feira, 25 de setembro de 2013
Ontem
Caro Aly,
Partilho este texto consigo, em forma de profundo agradecimento por tudo o que é e faz, e sinal de partilha comum na Esperança. Chamo-me Rui S., tenho 35 anos e sou missionário. Nas minhas andanças, a Guiné-Bissau, onde trabalho vários meses por ano em acções de formação, meteu-se-me nas entranhas como um grande amor.
Um abraço e coragem, muita, que bem precisa.
Kassumay
"Ontem foi um dia grande para a Guiné-Bissau. 24 de Setembro, Dia da Independência. Ontem, 40 anos. Foi em 1973 que a Guiné-Bissau autoproclamou a sua independência em relação ao regime colonizador português. Seria preciso mais um ano para que Portugal, entretanto Abrilado, reconhecesse essa declaração. 40 anos de Independência ou, pelo menos, de história para chegar a qualquer coisa parecida com isso. É impossível o meu coração não alinhar estes "40 anos" com outros 40 que eu conheço e me fascinam…
Porque fiz família na Guiné aconteceu-me amá-la e ter Esperança nessa terra. Por isso ando desde ontem a rezar dentro de mim a ladaínha de um Êxodo Novo, na mesma África que viu o primeiro e mais famoso, aquele dos escravos dos Egípcios, mas, desta vez, mais em baixo e na costa ocidental. Desfio nesta ladaínha africana por um Êxodo na Guiné a Esperança de ser hoje o Dia Um. Acabou o período dos 40 anos, acabou o tempo da Travessia do Deserto e do descalabro de ter caído em toda a espécie de tentações. Acabou o tempo dos Bezerros de Ouro que levam à ruína o seu povo para medrarem eles mesmos.
Como os meus antepassados no Egipto há muito tempo, também os meus antepassados guineenses, há 40 anos, escolheram a Liberdade como uma rebeldia, uma ousadia. Onde já se viu a Independência ser proclamada de maneira unilateral exactamente pela parte colonizada? Tantas semelhanças encontro com a aventura antiga das escrituras… Essa indomável Fé na Liberdade! A ousadia no comando, a Liberdade como único destino digno de Fé.
Mas, depois, os tais 40 anos… os do deserto e das tentações experimentadas, uma após outra. É que não se é livre por proclamação. A Liberdade é coisa de construir mais devagar. A independência declara-se. A autonomia aprende-se. A Liberdade constrói-se. Há muito percebi que Deus precisou de uma noite apenas para tirar Israel de dentro do Egipto, mas precisou de 40 anos para tirar o Egipto de dentro de Israel. A libertação é uma cura de paciência.
Mas, ontem, passaram já os 40 anos para a minha Guiné. El kumanda, aos i Dia Purmero, nha familia! Por isso, hoje é o Dia Primeiro! Hoje é o Dia Primeiro da Terra Prometida por Cabral, o Amílcar, apontada logo ali, do outro lado das armas e da força. Mas ainda estamos a atravessar esse Jordão larguíssimo de violência, a última fronteira para darmos de caras com uma Terra da Promessa onde mana leite de coco e o mel dos mangos.
Por agora, o meu coração repousa dentro de mim, no sereno que antecede a manhã junto ao porto de Pindjiguiti. E, nesse sossego, passeiam-se diante de mim rostu di mininus de Suzana, ou de Canchungo, dou de Antula, ou de Santa Luzia ou da Ajuda em Bissau, ou de Cacheu, ou da minha Bula… E são os rostos deles que me garantem que hoje pode ser o Dia Primeiro, e são os olhos deles que, de tão grandes e focados, me enchem e concentram na certeza da Esperança."