segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Aly Silva, em entrevista exclusiva ao jornal angolano 'O País' (Parte I)



O País  (1)
Jornal 'O País', edição de 27 de setembro de 2013

40 anos de independência da Guiné-Bissau: O triste olhar de António Aly Silva sobre o país de Amílcar Cabral, 40 anos depois

Entrevista de Orlando Rodrigues
Cidade da Praia, Cabo Verde

É jornalista, e é com a palavra que, todos os dias, nas páginas virtuais do blog “Ditadura do Consenso”, procura combater a situação real prevalecente na Guiné-Bissau, um país que, no momento em que completa 40 anos de independência, ainda passa a vida “na intriga e na matança”. Chama-se António Aly Silva, e é conhecido em todo o mundo como um dos principais opositores ao regime militar, vigente naquele país lusófono na sequência do Golpe de Estado de 12 de Abril de 2012. Contundente na palavra e convicto dos próprios princípios e ideias, lança, nesta entrevista exclusiva a “O País”, um olhar de mágoa, tristeza e revolta, sobre a actualidade guineense, um país geograficamente distante mas muito próximo, em cultura, afectividade e afinidades históricas, do povo angolano. António Aly Silva, cujo blog conta já mais de 8 milhões de visitas, identifica, denuncia e acusa, sem papas na língua, os que considera serem os culpados pela situação do seu país que, avisa com tristeza, “vai voltar a sangrar”.

A Guiné-Bissau está a celebrar o 40º aniversário da sua independência nacional (proclamada a 24 de Setembro de 1973). Enquanto cidadão guineense, tem motivos para festejar?

Não! Não tenho. Não tenho e deixei isso claro hoje no meu blog, dizendo que não ia ser actualizado por protesto. Porque estar neste momento fora da Guiné-Bissau, e logo em Cabo Verde, um país que connosco fez a luta de libertação, e ver o desenvolvimento a que aqui se chegou mesmo com todas as dificuldades, o que só mostra que a estabilidade é essencial, deixa-me, por um lado, orgulhoso dos cabo-verdianos, e, por outro, extremamente triste por contraste com o que se passa no meu país. Porque vivemos permanentemente em instabilidade, criamos e fomentamos o ódio, passamos a vida na intriga e na matança, e o mais chocante é que não há responsáveis. E o descaramento total foi, agora, a tropa querer que um parlamento também ele ilegal, amnistiasse os crimes que ela própria cometeu. As pessoas que deram o golpe nunca foram à tropa e acabaram por ser incorporadas às pressas, para receberem a farda e o (António) Indjai poder manter a sua guarda pretoriana de analfabetos e assassinos.

A que pessoas se refere especificamente?

São muitas. Está lá a pessoa que me prendeu e cortou a orelha, no dia do golpe. Todos aqueles jovens que estão hoje em Cumeré para serem militares, nunca antes vestiram a farda. Um dos exemplos é um dos cabeças do tráfico de drogas e que é a mão direita e o pé esquerdo do Indjai e que conheço bem porque foi a pessoa que me prendeu no dia a seguir ao golpe e nem era militar na altura. Até tenho fotos dele em Cumeré, de boxer, corpo nu e kalashnikov na mão. Não consigo ver em que outro país se possa encontrar soldados assim.

O facto de estar em Cabo Verde acentua ainda mais, na sua percepção, os contrastes que há nos percursos dos dois países?

Os contrastes são gritantes. A Guiné-Bissau tem um Ministério da Indústria e não sei para quê. Cabo Verde, em contrapartida, fabrica e produz bens e serviços em quase todas as ilhas. Na ilha do Fogo até fabricam vinhos reconhecidos internacionalmente, e sei, por exemplo, que o vosso primeiro-ministro foi recentemente à Itália e levou 10 caixas, justamente para promover o que aqui se produz, e bem. Pelo que conheço dos dois países, posso afirmar que a Guiné-Bissau, mesmo com estabilidade, nem daqui a 20 anos chegará ao patamar de desenvolvimento que Cabo Verde já atingiu. Porque parece que, lá, ninguém deseja o desenvolvimento do país, que não se constrói com analfabetos no Parlamento, no Governo e nas Forças Armadas. E muito menos com bandidos no poder, pois bandido tem de estar é na cadeia. A diferença gritante é que, em Cabo Verde os traficantes são presos e, quando são condenados, todos os seus bens são confiscados a favor do Estado, enquanto, na Guiné, não se confisca um triciclo de um traficante. Quando muito, a tropa liga e diz: acabou a audiência. E o Ministério Público e os tribunais obedecem e soltam os bandidos. Isso não é país, nem Estado.

O que é que chamaria, então, à Guiné-Bissau?

Um Estado completamente anárquico, onde cada um faz o que quer. A EAGB (empresa de electricidade) chega e corta a luz, e quando dá as costas a pessoa coloca uma escada, liga de novo e as coisas continuam iguais. A pirâmide está invertida, os que sabem e os que são honestos estão a ser esmagados aqui em baixo, e todos estão reféns daquela gente. Estamos reféns da tropa que faz e desfaz, e não sei para que é que a Guiné pede dinheiro para eleições e a comunidade internacional dá.

Dá razão, então, ao antigo Presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires, quando ele é citado pela imprensa a dizer que a instituição militar guineense caiu na delinquência e na tirania?

O comandante Pedro Pires tem autoridade moral para falar como falou. Ele foi combatente da liberdade pelos dois países, foi governante dos dois países logo após a independência e, posteriormente, primeiro-ministro de Cabo Verde, país de que veio a ser eleito, por duas vezes, Presidente da República. Neste momento, ele fala como um simples cidadão mas tem toda a legitimidade para criticar a situação actual e os seus protagonistas, acima de tudo porque ele gosta da Guiné-Bissau e nós também gostamos muito dele. Existe até, na Guiné, quem discuta sobre a tribo a que pertence: uns dizem que é manjaco, outros que é papel, e há ainda quem pense que ele é balanta. Isso ilustra bem a empatia que existe entre Pedro Pires e povo guineense, e demonstra o quanto ele é querido no meu país. Por isso, acho que o comandante não disse o que disse por mal, e de uma conversa que tive com ele depreendi que até que foi mal interpretado, intencionalmente ou não. Mas como tem autoridade moral para isso, aquilo bate e cai e tanto faz que ele tenha dito como não. Assim como o primeiro-ministro cabo-verdiano terá afirmado que, em Cabo Verde, não se brinca aos Estados, e está muito bem dito. Porque nós não temos um Estado. E só temos fronteiras porque existem.

Não se pode falar do percurso histórico da Guiné-Bissau dissociando-o do caminho feito por Cabo Verde. A Guiné-Bissau fez a luta de libertação de maior sucesso em África…

…do mundo. Tivemos a melhor guerrilha do mundo.

…seja, do mundo, e libertou pelas armas o seu próprio território, após o que proclamou unilateralmente a independência, imediatamente reconhecida por toda a comunidade internacional. Unido a Cabo Verde fez a primeira parte do percurso, e depois aconteceu a ruptura. A Guiné-Bissau desfez a unidade preconizada por Amílcar Cabral, e na última década e meia tem vivido em constante instabilidade. Qual foi, para si, o momento crítico que terá conduzido à actual situação?

O golpe de Estado de 1980. O dia 14 de Novembro de 1980 marca o fim do sonho que Amílcar Cabral idealizou. Eu não sou um saudosista que pensa que a unidade Guiné-Cabo Verde, concebida por Cabral, poderia ter-se concretizado. Não podia. Mas os dois países tinham tudo a ganhar com uma cooperação estreita e saudável. Temos, com Cabo Verde, mais afinidades que com qualquer outro país do mundo, mesmo com Portugal, que esteve presente na Guiné-Bissau durante 500 anos, e com os países com os quais temos fronteiras terrestres. O Senegal, por exemplo, é o nosso maior inimigo, e este golpe de 12 de Abril não foi para depor o Cadogo (Carlos Gomes Júnior, antigo primeiro-ministro). Foi por causa do trabalho que Angola vinha fazendo, por exemplo no Porto de Buba (a cerca de 200 km de Bissau), que seria certamente o maior da África Ocidental e viria naturalmente a eclipsar a importância do Porto de Dakar. É um projecto antigo que se ia concretizar com a cooperação Angolana, e os senegaleses, sempre que ouvem falar disso, começam a “dar ataques”. O Senegal nunca quis isso, e fez intrigas para provocar o golpe de Estado e, assim, comprometer os investimentos angolanos e promover a saída da MISSANG (Missão Militar Angolana na Guiné-Bissau) do país. Esses investimentos e a MISSANG eram uma forma de Angola demonstrar gratidão pelo que deve à Guiné-Bissau, algo de que muita gente não tem sequer noção. A Guiné foi um dos principais palcos logísticos da guerra em Angola, para onde enviou milhares de homens para combaterem os sul-africanos.

O PAÍS CAPA

Honras de capa

Quer dizer que a MISSANG era uma forma de Angola demonstrar a sua gratidão para com a Guiné-Bissau…

Nem mais. E o Fidel Castro disse isso mesmo ao Carlos Gomes Júnior em Cuba. Derramou-se sangue guineense em Angola, assim como se derramou sangue cabo-verdiano na Guiné. A verdadeira vocação da MISSANG era a reforma das Forças Armadas guineenses, um problema que se arrasta desde a independência e nunca foi resolvido, e é por isso que o país vive a situação que todos conhecem, protagonizada pelos militares. Portanto, nós só teríamos a ganhar se puséssemos de lado esse orgulho de merda que nem sei onde fomos buscar e aceitássemos a ajuda que nos chegava de Angola. Os militares criaram um ódio visceral, não só em relação a Angola mas, até, com Cabo Verde, mas felizmente esse ódio não é retribuído. Existem mais de 9 mil guineenses a viver em Cabo Verde, 8 mil dos quais em situação perfeitamente legal…

E as autoridades cabo-verdianas têm promovido frequentemente campanhas de legalização de emigrantes guineenses indocumentados, o que ainda não aconteceu com qualquer outra comunidade presente no país. Isso, certamente, não pode ser visto com um sinónimo de ódio em relação aos guineenses…

Muito pelo contrário. Por isso, se os militares pensam que tudo o que têm feito e dito contra Cabo Verde e Angola pode pôr em causa as afinidades e a amizade entre os nossos povos, estão completamente enganados. Mas devo ser justo e dizer que não é toda a instituição militar que está envolvida nestes desmandos. Há oficiais sérios e honestos, que apenas compactuam porque têm medo. Existem outros, que acabaram por abandonar o país e não estão envolvidos nas intentonas nem no tráfico de drogas.

O Zamora Induta é um deles?

O Zamora Induta foi deposto, e o que se passou nesse dia foi um autêntico filme de comédia. (CONTINUA)