sexta-feira, 12 de abril de 2013
Mulheres de armas
Um ano após o golpe de Estado, o narcotráfico tornou-se ainda mais forte e mudou o quotidiano dos guineenses. Várias vezes, Lucinda Barbosa Ahucarié usou o seu carro pessoal para fazer o trabalho da polícia - e isso incluía apreensões de droga em Bissau. A Polícia Judiciária (PJ) não tinha viaturas, algemas ou lanchas rápidas para vigiar o mar e os muitos rios da Guiné-Bissau. "Não havia nada."
Esse deserto de meios contrastava com a firmeza e o ritmo das investigações iniciadas no seu gabinete de directora da PJ, quando ao mesmo tempo, no Ministério da Justiça, outra mulher, a advogada Carmelita Pires se entregava de igual forma à luta contra o tráfico de droga.
Ambas estão em Portugal. O motivo que as levou a sair de Bissau, em momentos distintos, não se alterou. Só se intensificou. As perseguições militares a vozes dissonantes ou incómodas multiplicaram-se desde que os golpistas liderados pelo general António Indjai tomaram o poder no dia 12 de Abril. Nesse dia, a governação passou para o controlo de um comando militar de seis elementos. Foi há um ano. Dias depois, Manuel Serifo Nhamadjo era nomeado presidente de transição e Rui de Barros primeiro-ministro.
O 12 de Abril não foi apenas mais um golpe de Estado a juntar a outros violentos episódios da conturbada história do país. O tráfico de droga, livremente instalado no país desde 2004, ganhou asas. Antes e depois, tornou mais forte quem se envolveu nele. E mudou irremediavelmente a vida de muitos guineenses.
O medo instalou-se. Medo não só dos responsáveis do topo envolvidos no narcotráfico, mas da pessoa do lado - amigos ou vizinhos - que possa ter ligações ou ser cúmplice. "Pela forma como a droga se infiltrou no nosso país, as pessoas passaram a ter medo não só dos que estão à frente do negócio mas também dos que a ele, de alguma forma, estejam ligados", diz Carmelita Pires. As pessoas evitam pronunciar a palavra "narcotráfico". Mas vivem com ela.
Quando Lucinda Barbosa chegou à Judiciária, vinda da magistratura do Ministério Público, uma das suas primeiras missões foi criar uma rede de colaboradores e informadores para, com a devida protecção, preencherem o vazio de agentes da Judiciária em muitos recantos da Guiné onde as movimentações de aviões e barcos com droga se tinham tornado constantes. "Era uma luta", conta Lucinda Barbosa. "Eu entendia que tinha de salvar aquele país." Um país pequeno que a ausência de meios tornava imenso. E vulnerável.
Entre o momento em que chegou a directora da PJ, em Julho de 2007, e aquele em que saiu, em Maio de 2011 - pressionada pelas ameaças de morte e a intimidação de chefes militares -, foram realizadas importantes apreensões de droga e presos suspeitos de narcotráfico. Eram colombianos, venezuelanos, nigerianos e alguns guineenses, incluindo militares. Mas nenhum foi julgado ou condenado. Também foram feitas pequenas apreensões de cidadãos africanos de vários países que tentavam embarcar em voos comerciais para a Europa, via Lisboa.
O país já estava então no coração da rota do tráfico internacional que liga a América do Sul à Europa e Estados Unidos com passagem pela África Ocidental. Era habitual ouvir as avionetas a pousar e levantar voo e ver barões da droga ou seus representantes a circular livremente pelas ruas da capital - vivendo em hotéis e dispondo de instalações militares para guardar a droga que traziam da Colômbia e da Venezuela.
Uma nova etapa?
Bubo Na Tchuto era então chefe do Estado-Maior da Marinha, e mesmo quando deixou de o ser, em 2008, manteve uma grande influência. "Ele foi o homem que, durante muitos anos, dominou os mares da Guiné", salienta Carmelita Pires. Foi o primeiro alto oficial guineense suspeito de ligações ao narcotráfico. Mais tarde, houve outros.
Na semana passada, Bubo Na Tchuto foi preso pelas autoridades norte-americanas e conduzido para os Estados Unidos, onde é acusado de ligações ao narcotráfico e conspiração para introduzir grandes quantidades de cocaína nos EUA, onde será presente uma segunda vez ao juiz na próxima segunda-feira. Carmelita Pires diz: "Hoje tenho a convicção de que amanhã será diferente. Dantes não tinha essa certeza. Não posso aceitar que, no meu país, antigos combatentes estejam envolvidos em actividades criminosas, como o tráfico de armas e o narcotráfico. E digo "Antigos Combatentes" com letra grande", frisa, "pois foram os homens que nos deram a nação". Bubo Na Tchuto era um deles.
"[A prisão de Bubo Na Tchuto] é uma chamada de atenção para a justiça guineense assumir as suas responsabilidades e para que os militares saibam que não estão acima da lei", acrescenta Lucinda Barbosa. Outro dos indiciados pelos EUA por envolvimento no narcotráfico desde 2010 é Ibraima Papa Camará, actual chefe do Estado-Maior da Força Aérea. Mas não será o único.
Bubo Na Tchuto foi preso em águas internacionais, ao largo de Cabo Verde, por agentes encobertos da Drug Enforcement Agency (DEA) norte-americana, envolvidos numa missão operacional desde Junho de 2012. Os agentes faziam-se passar por representantes das FARC na Colômbia e negociavam a passagem de pelo menos quatro toneladas de cocaína pela Guiné-Bissau, em troca de benefícios para o poder guineense; a droga seria vendida nos EUA e o dinheiro entregue à guerrilha colombiana, que Washington inclui na lista de "organizações terroristas".
Bubo Na Tchuto era figura central desta operação, que envolvia ainda, pelo menos, dois outros militares, e seria feita - segundo a Reuters, que cita a acusação dos EUA - com o conhecimento do Presidente de transição, Manuel Serifo Nhamadjo, nomeado pelos militares golpistas do 12 de Abril. O que farão agora os EUA? Lucinda Barbosa e Carmelita Pires esperam que esta prisão seja um primeiro virar de página no seu país.
Lucinda Barbosa fala agora pela primeira vez desde o golpe de Abril, quando as ameaças de morte se tornaram mais frequentes. Dois militares à paisana foram a sua casa, com armas de assalto, à sua procura. Não estava. Pouco depois, deixou o país.
Olha para trás, para o momento em que assumiu o cargo de directora da PJ: "A situação do narcotráfico já era visível. Os militares participavam e protegiam os narcotraficantes. O transporte da droga com o uso dos aviões ou das viaturas para o interior era muito visível", lembra.
Em Cufar, no Sul, perto de Catió, foi apreendida uma cisterna de combustível. As movimentações para abastecer aviões e avionetas eram constantes, bem como a regularidade dos voos em Cufar e Bubaque, no arquipélago dos Bijagós.
Destino da droga: Europa
A droga saía do Sul, por estrada ou mar, e chegava a Bissau, onde era armazenada. O destino final era a Europa, por mar ou avião. Lucinda Barbosa recorda que foram feitas várias detenções de guineenses, cabo-verdianos, nigerianos ou senegaleses, que tentavam passar a droga para a Europa em voos comerciais para Lisboa, sendo esta a única ligação europeia directa com Bissau.
Quando era em grandes quantidades, a droga também saía por mar. Nas zonas Norte e Leste, as antigas pistas de aviação e os portos de Ingoré e de Fulacunda, utilizados no tempo da presença portuguesa, foram especialmente reactivados para esse fim.
E, no imaginário colectivo, SOMEC deixou de representar uma antiga empresa de construção portuguesa e passou a ser um dos lugares mais emblemáticos de uma nova realidade que mergulha Bissau na desconfiança e no desconhecido. As suas instalações foram ocupadas pelos narcotraficantes.
O dia-a-dia de Lucinda Barbosa tornou-se numa luta constante. Bubo Na Tchuto ameaçou-a publicamente, dizendo que sabia que era ela quem estava a fornecer informações aos americanos. E quando, numa reunião no Estado-Maior entre responsáveis políticos e Forças Armadas, os militares deixaram claro que nenhum deles poderia ser responsabilizado se algo viesse "a acontecer à Lucinda", ninguém, entre os responsáveis políticos, da Presidência ao Governo, ainda no tempo de Malam Bacai Sanhá e do primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior, se levantou e mostrou firmeza face aos militares e em defesa da chefe da polícia.
Durante muito tempo, ela resiste. Mas, em Maio de 2011, dirige um pedido de demissão, escrito pelas suas próprias mãos, ao então ministro da Justiça (já depois de Carmelita Pires sair), que o aceita. A magistrada formada no Centro de Estudos Judiciários de Lisboa é nomeada directora-geral da Viação e Transportes Terrestres, onde continua a ser perseguida. "Infelizmente, onde eu estiver, eles vão sempre procurar-me", diz agora. Pouco menos de um ano depois, o seu gabinete foi arrombado e invadido pelo actual chefe de Estado-Maior da Marinha, ligado ao golpe de 12 de Abril. Antes, telefonaram-lhe a pedir a chave, o que ela recusou. Em Julho, saiu do país. O chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), general António Indjai, ainda hoje diz estar "à espera da Lucinda" para um ajuste de contas.
Ameaças e telefonemas
"Eram ameaças de morte em telefonemas nocturnos." É Carmelita Pires quem agora fala. Mas podia ser Lucinda Barbosa. A vida de ambas estava, nesses anos, virada para o combate ao tráfico. As duas estiveram sob ameaças semelhantes. "Quando me ameaçavam, também diziam que eu tinha sorte em ser mulher. Se não fosse, já estaria morta, diziam."
Mas não foi por isso que, numa noite, em 2008, fez as malas e encaixotou livros e tudo o que tinha para deixar Bissau. Nesse dia, ficou retida o dia todo, em que ficou incomunicável, numa reunião de conselho de ministros, chefiada pelo Presidente da República. Quando saiu da reunião, os dois narcotraficantes venezuelanos, presos dias antes pela PJ, tinham sido libertados. Entre eles, estava Antonio Carmelo Vasquez Guerra, procurado internacionalmente por narcotráfico. "Nesse dia, perdi a cabeça", diz a advogada e mestre em Direito pela Universidade de Lisboa.
Mas, depois de fazer as malas, Carmelita Pires mudou de ideias e passou o resto da noite a desfazê-las. Decidiu ficar. E pensou: "Eu não vou a parte nenhuma. Se eles quiserem, que me tirem daqui. Eu não vou desiludir a comunidade internacional, nem me vou desiludir a mim própria."
Acabou por sair do país em Abril de 2009, por iniciativa da embaixada dos EUA, que considerou que a sua vida estava em risco. Foi colocada em Abuja, na Nigéria, como conselheira especial do presidente da comissão da CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental) para as questões do narcotráfico - tinha contribuído para a criação do Plano Regional de Combate ao Narcotráfico, discutido em Cabo Verde. A missão em Abuja poderia ter sido prolongada, mas, no ano passado, Carmelita Pires, planeou regressar a Bissau. E continua à espera de poder voltar.
Ainda em Bissau, Carmelita Pires chegou a receber, no seu gabinete, pessoas que traziam da parte dos militares um conselho: "Diziam para eu parar e me lembrar que quem tinha as armas eram eles. Eu respondi que quem tinha a caneta nas mãos era eu."
Carmelita Pires tinha sido reconduzida para o Governo de iniciativa presidencial liderado por Nino Vieira, em 2008, por exigência da comunidade internacional, que valorizava o papel da governante no combate ao narcotráfico. Um ano antes, na sua chegada ao Ministério da Justiça, fora contactada por agentes da DEA que lhe perguntaram se sabia que "os militares estavam envolvidos no narcotráfico". Seguiram-se "vários embates". Carmelita Pires lembra-se de estarem as duas - ela e Lucinda Barbosa - a trabalhar nas instalações da PJ, quando um homem apareceu dizendo que os dois colombianos presos por narcotráfico eram hóspedes da Presidência, dando a entender que deviam ser libertados - o que ambas recusaram.
Foi depois de uma importante operação em 2007, em que foram presos esses dois colombianos suspeitos de narcotráfico em Bissau. Viviam na capital guineense e a sua base era o armazém da SOMEC. Com a sua detenção, foi apreendida uma soma de quase 100 mil euros, armas, munições e gás paralisante, telemóveis, que foram enviados à Interpol, para investigação, e um quadro que listava nomes de responsáveis militares e políticos no país, com setas a indicar eventuais ligações. Esse quadro, diz Lucinda, mostrava "a dimensão e a promiscuidade" entre narcotraficantes e figuras do topo da Guiné. E parecia revelar "uma tentativa de controlar tudo" no país.
Cooperação com Portugal
A apreensão de material e a detenção de narcotraficantes, nessa operação de 2007, deram ímpeto à investigação a que se juntaram polícias internacionais - Interpol, Polícia Judiciária e GNR portuguesas -, bem como o FBI e a Drug Enforcement Agency (DEA).
Apesar das resistências, a PJ confiscou o dinheiro apreendido e a então ministra Carmelita Pires solicitou junto do primeiro-ministro a abertura de uma conta consignada junto ao Tesouro Público denominada "Combate ao Narcotráfico". Esse dinheiro foi utilizado para comprar algemas e duas viaturas para a PJ e melhorar as condições nas celas nas suas instalações. Mas os suspeitos, que tinham como defensor o bastonário da Ordem dos Advogados na altura, foram libertados com a conivência do Ministério Público.
Pouco depois, em Janeiro de 2008, dois membros da Al-Qaeda eram detidos em Bissau. Mohamed Chabarnou e Sidy Ould Sidne eram procurados pelo assassínio de quatro turistas franceses na Mauritânia e foram entregues à Mauritânia, por decisão administrativa no âmbito da cooperação internacional. A sua passagem por Bissau reforçou a convicção de que o terrorismo na África Ocidental estava a ser financiado pelo narcotráfico. "A presença destes dois homens em Bissau demonstra-nos que há uma fragilidade do país" e que este pode estar a ser utilizado não só pelos narcotraficantes mas também por grupos terroristas, diz Lucinda Barbosa.
Pirataria e crime organizado
Kofi Annan, secretário-geral da ONU entre 1997 e 2007, lamenta hoje que a comunidade internacional tenha, nos últimos 10 anos, ignorado a ameaça colocada por "Estados corruptos como a Guiné-Bissau" e recomenda "cuidado quando se lida com Estados falhados". Se, na Somália, a indiferença levou à pirataria, sugere Annan, na Guiné-Bissau facilitou o narcotráfico.
"Ignorámos a Somália durante 20 anos e quando [essa inacção] nos foi devolvida com a pirataria, toda a gente acordou", disse Annan, em Janeiro deste ano. "De certa forma, estamos a fazer o mesmo com a Guiné-Bissau. Foi onde [o narcotráfico] começou e nós permitimos que ele aumentasse." Dias antes, o seu sucessor, Ban Ki-moon, tocara num ponto sensível da situação na Guiné-Bissau. Num relatório apresentado ao Conselho de Segurança da ONU, denunciava o aumento da criminalidade organizada no país com "o apoio de membros das forças de defesa e segurança e das elites políticas" desde o golpe de Estado de 12 de Abril de 2012.
Um ano passou. Continuaram a ouvir-se as avionetas a entrar e a sair do país. E com maior frequência. "Centenas de quilos de cocaína estarão a entrar clandestinamente em cada operação" e cada operação terá lugar "uma ou duas vezes por semana sem nenhuma intervenção dos poderes públicos", notava Ban Ki-moon nesse relatório. Este golpe segue-se a outros num país marcado pela violência. Ainda presente na memória de muitos, estão os assassínios do ex-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA) general Tagmé Na Waie e do Presidente Nino Vieira em Março de 2009. Mas este golpe não é como os outros. As perseguições continuam a alimentar o medo e o novo poder, reconhecido pelos países da região, ainda não marcou uma data para as eleições. Público