sexta-feira, 1 de junho de 2012
Que viabilidade para a Democracia na Guiné-Bissau?
Miguel de Barros, Sociólogo, Movimento Acção Cidadã
Para o Movimento Ação Cidadã “Pensar pelas nossas próprias cabeças, andar com os nossos próprios pés”, o mais importante é que a nossa mobilização e intervenção possa constituir um legado de saber político e de pedagogia cívica em favor da democracia, em favor da Guiné-Bissau no presente e no futuro. Por isso, esta conferência inaugural marca o início de um ciclo de debates mensais aqui neste auditório do Centro Cultural Franco-Bissau Guineense (CCFBG), inserindo-se num conjunto de ações que visam promover o debate, a cultura do debate e de estímulo ao pensamento crítico, alternativo e construtivo na nossa sociedade, levando-nos a promover até ao fim do período de um ano de transição, ou seja até Maio de 2012, debates radiofónicos semanais interativos, djumbais da cidadania nos bairros periféricos de Bissau com as bancadas e debates temáticos diários ao nível do nosso blog/página do facebook.
Não temos financiamentos, não somos financiados por ninguém e nem estamos aqui a pedir financiamentos enquanto os nossos membros ainda estão disponíveis a dar abotas consoante as necessidades, pois esta nossa iniciativa parte de um simples princípio de que as pessoas têm direitos, mas também deveres cívicos na perspectiva de autonomia de expor as nossas próprias ideias e promover as nossas ações junto das comunidades locais e nacionais. Daí que a realização da ação democrática é efetivamente influenciada pelas liberdades políticas, pelas oportunidades económicas, pelos poderes sociais e o incentivo e estímulo de iniciativas. Os dispositivos institucionais para as tais oportunidades são também influenciados pelo exercício das liberdades pelas pessoas, através da participação desimpedida nas escolhas sociais e na tomada de decisões públicas que induzem ao progresso dessas oportunidades. São esses princípios que sentimos que hoje estão ameaçados na Guiné-Bissau e que se não forem abordados numa perspetiva de responsabilização individual e coletiva, levarão à impossibilidade de concretizar a paz e o direito ao desenvolvimento neste país.
Nesta ordem de ideias, gostaria de partilhar algumas inquietações sobre a viabilidade da democracia na Guiné-Bissau, pensando por exemplo, como pode funcionar a democracia sem liberdades políticas efetivas, sem possibilidades de manifestação? Como “democratizar a democracia” se em 21 anos do ensaio deste sistema já foram protagonizadas 10 tentativas de Golpes no Estado, sendo que alguns se concretizaram em governos não sufragados pelo veredito popular? Que veredito popular se o povo de facto não é soberano? Mas afinal de que soberania pode gozar a nossa democracia se ela nem é capaz de cumprir um único ciclo de mandato em mais de 20 anos? Como é que a democracia pode ser viável sem disponibilidades económicas necessárias para as populações? Como a democracia pode ser viável se ela não se traduz nas oportunidades e proteção sociais da população guineense? Como pode a democracia constituir garantia do progresso se os candidatos ao exercício do poder democrático não estão comprometidos nem com a democracia e muito menos com a sociedade? Para um guineense que nasceu no ano da liberalização política (1991), será que sobressai nele a cultura democrática ou golpecrática e da violência que ele exerce? Porquê que então fingimos ficar surpreendidos que na nossa sociedade a função mais nobre é ser ministro ou militar em plena economia de mercado e sociedade de informação e do conhecimento?
Se na verdade, a abertura democrática, foi marcado pela ampliação da esfera pública, em particular pelo protagonismo da sociedade civil, no nosso caso, a liberalização política foi interpretada como oportunidade do desengajamento do Estado com um “projeto sociedade” sobretudo na educação. Ou seja, a educação deixa de constituir-se um bem comum prioritário, iniciando um processo de privatização e de comercialização de diplomas que garantia a massificação do ensino, mas sem equidade e qualificação, às populações foi-lhes sistematicamente ensinado como votar e não porque votar! Agora, como poderá uma democracia ser emancipatória se volvidos mais de 20 anos da adoção do sistema democrático, mais de metade da população continua analfabeta e sem capacidade de ser ela própria detentora da sua ação produtiva e social? Que igualdades de oportunidades entre rapazes e raparigas potenciamos, que possibilidades entre homens e mulheres promovemos então? Será que a pressão social que existe hoje na nossa sociedade não é fruto desta nossa opção?
Aqui coloca-se a questão do Estado e do seu papel. Não conseguindo cumprir o seu papel básico de satisfação das necessidades da sua população, o estado guineense foi capturado não sendo capaz de respeitar o bem-comum, pois transcende dos interesses particulares. As oportunidades e projetos não dependem da forma crucial das instituições de facto e das formas como deveriam funcionar. As instituições não só não contribuem para a nossa liberdade, como ainda não estão presentes para velar pela nossa proteção, responsabilização e criação de dispositivos para sua ficalização e avaliação. O Estado guineense não tem conseguido vencer a batalha de aumentar a sua capacidade produtiva porque desinvestiu na formação qualificada e nem encoraja os poucos que qualificou para integrarem as suas instituições.
Como consequência, o Estado guineense não consegue emancipar-se economicamente e democraticamente na medida que a estratégia de captura e conservação do poder numa aliança triangular político-militar-privado concorre para a reprodução de instituições frágeis, deixando de fora e na precariedade/contingência os seus quadros mais aptos, perdendo assim a sociedade a capacidade de estimular uma classe média com criatividade atuante, a massa crítica, a possibilidade de projeção a longo prazo, de renovação social e atualização de novas sínteses culturais. Esta situação agudizou-se com a desestabilização protagonizadas desde 1998, demonstrou que o Estado não está em crise nem em colapso, mas que simplesmente tornou-se irrelevante como um Estado contemporâneo, afastando assim muitos jovens e quadros da vida político-partidária.
No entanto, os últimos acontecimentos de 12 de Abril, pelo facto de ter sido sobretudo um golpe às e nas eleições, teve um efeito positivo em termos de mobilização da Sociedade Civil, em especial a nova geração, para o debate e envolvimento político, como também projetou os sentimentos dos guineenses para uma crença de que estamos perante o início do fim de um ciclo de pendor militar na vida política. Mais do que nunca a Sociedade Civil envolveu-se num debate aberto sobre a necessidade e o papel das Forças Armadas no futuro da Guiné-Bissau em pleno gozo do estado de direito e democrático, que a ser consequente poderá contribuir decisivamente para uma verdadeira reforma do sector da defesa e segurança.
Porém, será necessário um intenso e permanente diálogo entre os órgãos de soberania e entre as instituições públicas e a sociedade civil (incluindo o privado e militar) na realização dos estados gerais que permitirão articular possibilidades e estratégias que favorecem ao consenso e compromisso para o fim do ciclo de transitoriedade do estado que se quer democrático na Guiné-Bissau. Isso implicará necessariamente uma articulação entre as diferentes manifestações da sociedade civil (formalizadas e não formalizadas) na refundação de um novo modelo, cultura e compromisso.
Esse modelo deverá implicar a projeção de um novo empreendedorismo político e económico (novos partidos políticos- as de agenda e de ideologias e não de interesseologia; novas empresas- as do conhecimento e do produtivismo e não do comércio e parasitismo) baseado num contrato social capaz de criar ingredientes para um mercado vital, isto é, se a economia estiver implantada numa Sociedade Civil mais ampla, e que albergue as interações sociais baseadas em normas como a confiança, fiabilidade, capacidade para o compromisso com todos os atores sociais e um reconhecimento mútuo não violento. Para isso é fundamental a reforma do sistema político vigente.
Contudo, um grande risco que existe é o facto do apoio a estes atores e à promoção do diálogo entre estes e o Estado ser uma dimensão que existe apenas em algumas estratégias de doadores bi/multi-laterais, ou seja de doadores. É neste sentido que o futuro das várias expressões da Sociedade Civil que eclodiram com o golpe de 12 de Abril se joga. Isto passará de algum modo pela existência de mecanismos de avaliação e integração das lições aprendidas, que poderiam ajudar a evitar ou controlar efeitos perniciosos das intervenções externas, capacidade de autofinanciamento e financiamento internos, mecanismos institucionalizados de concertação interna entre atores nacionais (estatais, locais, não estatais, privados). O desafio é o "problema da simultaneidade": a democratização do desenvolvimento e o desenvolvimento da democracia, isto é, o aprofundamento da experiência democrática em todas as esferas produziria uma nova síntese, uma nova estratégia de desenvolvimento que passa por se obter os benefícios necessários emancipatórios para as populações, desenvolvendo a sua crença no sistema democrático.