Por: Nuno Tiago Pinto/Revista Sábado, edição de 31-05-2012
O caso dos empresários desaparecidos
O DIAP de Lisboa arquivou um processo em que funcionários da embaixada de Portugal em Bissau eram suspeitos de vender vistos. Mas descobriu que, de um grupo de 52 guineenses que participaram numa feira em Lisboa, só dois voltaram à Guiné.
Nuno Tiago Pinto
Os rumores que circulavam em Bissau tornaram-se demasiado sérios para serem ignorados: funcionários da secção consular da embaixada portuguesa na Guiné-Bissau estariam a exigir 4 a 5 mil euros por um visto para Portugal. E em Junho de 2007 o Ministério dos Negócios Estrangeiros pediu à Polícia Judiciária para investigar o caso.
No mês seguinte, uma missão de inspecção partiu de Lisboa para Bissau. De acordo com o relatório final da PJ, disponível no processo consultado pela SÁBADO na 9ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, a investigação começou logo mal. Os investigadores quiseram visitar a representação diplomática de surpresa mas não conseguiram: o então Inspector-Geral Diplomático e Consular, José Luiz Gomes, avisou o embaixador português em Bissau, José Paes Moreira, e este alertou os outros funcionários. Ao chegarem à Guiné, os investigadores decidiram ir logo à embaixada de Portugal. Era meia-noite. E à porta da representação diplomática aglomeravam-se centenas de pessoas que tentavam marcar a sua vez de serem atendidas. Ganhavam corpo as suspeitas de vendas de senhas de atendimento.
Nos dias seguintes, os inspectores interrogaram os funcionários com responsabilidade na emissão de vistos. Todos negaram alguma vez terem recebido dinheiro em troca de uma autorização de entrada em Portugal. Mas, de acordo com o processo, no primeiro interrogatório ao encarregado da secção consular, Eduardo Silva Rafael contou que, em Fevereiro de 2006, antes de iniciar funções, um grupo de 52 indivíduos viajou para Lisboa para participar no SISAB - Salão Internacional do Vinho, Pescado e Agro-Alimentar. Apenas dois regressaram a Bissau.
O responsável pela secção consular era então Frederico Silva. Aos inspectores, este recordou que, na semana anterior à partida avisara o presidente da Associação Comercial da Guiné Bissau (ACGB), Malan Nancá, que ia recusar a maioria dos vistos porque a documentação não estava em ordem: os passaportes tinham sido emitidos um mês antes, os números de contribuinte uma semana antes, os cartões da ACGB não tinham fotografia, os alvarás comerciais estavam rasurados e nenhum tinha reserva de hotel ou avião, estrato bancário, comprovativo de meios financeiros ou seguro de saúde.
Era sexta-feira, 8 de Fevereiro de 2006. Frederico Silva foi de férias para Cabo Verde e, quando regressou, na 4ª feira seguinte, os vistos tinham sido aprovados. A vice-cônsul contou-lhe que tinha recebido instruções do embaixador para os reapreciar favoravelmente - o que esta último negou. De acordo com Frederico Silva, José Paes Moreira disse-lhe ter recebido uma carta da SISAB e um telefonema do chefe de gabinete do Secretário de Estado das Comunidades Portuguesa, Simeão Pinto Mesquita, e que, por isso, orientou a vice-cônsul a emitir um parecer favorável. Ainda assim, na véspera da partida Frederico Silva exigiu entrevistar os empresários. Quando percebeu que nenhum falava português ou crioulo, apenas francês, fê-los assinar um documento em que se comprometiam a ir à secção consular quando voltassem à Guiné - apenas dois o fizeram.
Durante as investigações, um funcionário da embaixada, João de Deus, foi apanhado numa escuta telefónica a sugerir a uma guineense que oferecesse ao cônsul entre 500 e mil euros para obter um visto para o irmão. João de Deus reconheceu a sua voz na escuta mas garantiu que não recebeu o dinheiro nem sabia se o cônsul o iria aceitar. Funcionário da embaixada há 30 anos, era responsável pela distribuição de senhas de atendimento, e explicou que havia quem inscrevesse quatro ou cinco nomes na fila para depois vender os lugares. Preço: “entre 10 mil e 15 mil Francos CFA (16 euros e 23 euros)”, metade de um salário mínimo na Guiné.
Ao todo, os inspectores voltaram a Lisboa com 64 processos suspeitos. De acordo com o despacho de arquivamento do DIAP de Lisboa, assinado pela procuradora Ana Margarida Santos, 41 desses imigrantes foram encontrados em situação ilegal. Apesar disso, 10 deles já tinham conseguido regularizar a permanência. Um aguardava a expulsão, outro tem um processo de averiguações e 29 estão em paradeiro desconhecido. A procuradora não encontrou indícios de corrupção ou de auxílio à imigração ilegal. Atribuiu a responsabilidade da concessão dos vistos para a SISAB ao embaixador Paes Moreira mas justifica-a com “interesses políticos e diplomáticos”.
No dia 31 de Maio de 2012 13:02, Nuno Pinto
Portas retira embaixador de Bissau
O ministro dos Negócios Estrangeiros decidiu reduzir o nível da representação portuguesa na Guiné. O contacto com o novo governo vai ser assegurado por um encarregado de negócios.
Nuno Tiago Pinto
A decisão foi tomada há quase um mês e tem sido preparada em segredo, com todos as cautelas: Portugal vai retirar o embaixador da Guiné-Bissau, na sequência do golpe militar do passado dia 12 de Abril. A ligação ao governo que saiu do acordo entre a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e o comando militar que depôs o primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior e o Presidente interino Raimundo Pereira vai passar a ser assegurada por um encarregado de negócios. Para ocupar esse cargo, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Portas, escolheu o diplomata Fernando Fazendeiro – que já está em Bissau desde o final da semana passada.
Ao que a SÁBADO apurou, o processo de decisão do chefe da diplomacia portuguesa teve uma preocupação: não hostilizar o novo poder guineense. Em vez de chamar a Lisboa o embaixador António Ricoca Freire (que a SÁBADO não conseguiu contactar até ao fecho desta edição), Paulo Portas aproveitou a coincidência de o mesmo diplomata estar nomeado para ir liderar a representação portuguesa na África do Sul para, simplesmente, não indicar sucessor. O novo titular do cargo deveria ser o até há pouco tempo vice-presidente do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, Manuel de Jesus, que vê assim a sua nomeação suspensa até as relações diplomáticas estarem normalizadas.
Os cuidados foram redobrados após a reacção do comando militar guineense às declarações de Paulo Portas do passado dia 17 de Maio. Ao lado de Carlos Gomes Júnior, o ministro português dos Negócios Estrangeiros disse que Portugal só reconhece as autoridades da Guiné-Bissau legitimamente eleitas e que todas as informações que dispõe relacionam o golpe com o narcotráfico. O porta-voz dos militares, Daba Na Walna, afirmou que Paulo Portas devia coibir-se de “acusações levianas” e negou qualquer ligação ao narcotráfico. “O Comando Militar não é um bando de traficantes de droga, isso é falso. Aliás, essa tem sido a política portuguesa relativamente à Guiné. Mas porque é que Portugal tem esta posição de hostilidade? Isso é terrível”, disse.
A preocupação da diplomacia portuguesa tem vários motivos: os laços que unem Portugal e a Guiné-Bissau, a manutenção de um canal aberto com o novo governo, a preservação dos projectos de cooperação e, sobretudo, a segurança dos cerca de três mil portugueses que vivem no território. Na sequência do golpe o Governo chegou a enviar para a região uma Força de Reacção Imediata, composta por uma fragata, uma corveta e um avião P3-Orion. Os militares ficaram 15 dias estacionados em Cabo Verde e voltaram sem que fosse necessário entrar em acção.
De acordo com as várias fontes contactadas pela SÁBADO essa decisão foi precipitada não só devido aos custos (quase seis milhões de euros), mas porque a grande maioria dos portugueses residentes na Guiné disse à secção consular que não queriam saír do país.
Esta não será a primeira vez que Portugal retira um embaixador de um estado membro da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP), apesar de ser um caso único nos últimos anos. “Aconteceu em Moçambique na década de 70. É uma situação normal quando as relações se deterioram”, diz à SÁBADO o ex-ministro dos negócios António Martins da Cruz. “Nos anos 80 também suspendemos a cooperação com a Guiné. Acontece muitas vezes com governos que saem de golpes militares”, acrescenta o também antigo titular da pasta António Monteiro.
A tentativa de coordenar a posição portuguesa no seio da CPLP foi, aliás, outra das preocupações. Para esta sexta-feira, dia 1 de Junho, estão agendadas as reuniões dos ministros da Agricultura e dos Assuntos do Mar, em Luanda e Portugal defende que os únicos que poderão ter assento nos encontros são os membros do governo legítimo. “Em princípio o país deve estar representado pelas autoridades eleitas.”, explica António Monteiro. “Qualquer outra pessoa não deve poder entrar na sala”, diz à SÁBADO fonte diplomática.