Rui Jorge Semedo, politólogo
Antes de tudo, apraz-me estar aqui, no Centro Cultural Franco Bissau-Guineense, ao lado dos amigos Miguel Barros, Nelson Lopes e demais presentes, na qualidade de membro do Movimento Ação Cidadã, cujo lema é: “pensar pelas nossas próprias cabeças, andar com os nossos próprios pés para participar do debate sobre os pressupostos da democracia e da cidadania na Guiné-Bissau.
Bem, num momento em que são levantadas muitas interrogações sobre sucessivos conflitos político-militar e, sobretudo, sobre a nossa (in)capacidade nacional de aderir e respeitar as regras do jogo democrático, tendo em conta as premissas de participação e contestação, nada mais sensato do que trazer o assunto ao espaço público para ser objeto de uma reflexão coletiva.
Como dizia o filosofo grego Aristóteles, “o homem é um animal político e a única diferença entre ele e outros animais está no uso do recurso da palavra”. Entretanto, é com ela que vamos poder expressar melhor os nossos sentimentos de alegria, de tristeza, de admiração, de repúdio, de congratulação, etc.
Não obstante, se me permitem, aproveito para dizer que não pretendemos com esta nossa comunicação desencadear uma ação evangelizadora e, muito menos, formatar a sociedade guineense a pensar como nós. Pretendemos, sim, tão-somente suscitar que cada cidadão guineense comece a pensar por si mesmo na responsabilidade que tem no destino desta sociedade e, simultaneamente, que os pensamentos expressos individualmente coincidam coletivamente com a vontade nacional de construir o bem-estar comum.
Para entrar no tema que me é incumbido, começo por dizer que o processo que conduziu à independência da Guiné-Bissau foi a génese de construção da cidadania guineense, principalmente por ser um processo nacional de contestação-negação de um estatuto perverso e desumano imposto pelo sistema. Aliás, como é do nosso conhecimento, na então Guiné-Portuguesa, a prática de hierarquização sócio-política não se distanciava do modelo da Grécia Antiga, e cerca de 99% da população nativa vivia literalmente sob o regime de escravidão, além de terem sido negado o acesso aos serviços sociais e aos direitos elementares básicos, como educação, saúde, habitação e liberdade à manifestação.
Nesse sentido, tanto a luta pela independência quanto a independência em si, devem ser vistos e entendidos como atos da cidadania, porque é um cumprimento do dever nacional. Muito embora, há que reconhecermos que a cidadania não foi adotada como um estilo de vida nacional.
Esta tomada de consciência nacional teve pouco tempo de vida e começou a ser obstruída com o golpe militar de 14 de novembro, que criou uma ruptura não só política em termos de construção de Estado-Nação, como também do ponto de vista social permitiu criar condições para o lançamento nos anos posteriores, de sementes de destruição da unidade nacional, que se manifestou através dos sucessivos golpes.
A partir dessa dinâmica, a ação violenta conseguiu se impor perante a legitimidade do princípio do diàlogo e respeito pelas instituições do País, e, explicitamente se instaurou como estratégia de circulação de atores políticos e militares na estrutura do poder vinculado à lei da arma.
A grande questão é que a ação violenta armada fez-se acompanhar pela decadência de autoridade moral. O primeiro transformou as instituições da Républica em reféns de vontade individual e/ou de grupos, enquanto que o segundo notabilizou-se pela existência elevada de corrupção, perda gradativa dos deveres e responsabilidades pessoal, familiar e profissional dos cidadãos.
Os impactos no tecido social, político e económico foram graves. As consequências estão patentes à vista desarmada, sobretudo, expressa no IDH da Guiné-Bissau, na perda do senso de humanismo nas instituições como hospital e escola, no crescimento da impunidade e na perda de identidade que nos é comum em deterimento de interesses eleitorais, étnicos, religiosos e económicos.
É interessante observar como essa desestruturação está a influênciar negativamente a atitude dos guineenses com a aparição de seguintes práticas:
• A desenfereada corrida pelo dinheiro fácil;
• Crença na impunidade;
• Vandalização do património público;
• A desvalorização e banalização dos simbolos nacionais;
• Ausência de sentimento nacional;
• Sobreposição do étnico sobre o nacional;
• Crise de personalidades de referência;
• Crise da instituição família e da educação;
• Culto de matchundadi
• Alteração violenta de ordem constitucional
Essas e outras constatações aqui não levantadas são comportamentos e manifestações que quotidianamente confrontam e agridam a possibilidade coletiva de consolidarmos o nosso papel social de cidadãos comprometidos com o bem-estar nacional.
É bom dizer que existe uma forte relação entre o nosso comportamento enquanto cidadãos, a imagem do país que queremos projetar e a atitude dos decisores por nós democraticamente eleitos. Quer dizer, nossa tomada de consciência como cidadãos com responsabilidade social, política e economica só terá consequências positivas na estrutura socio-governativa a partir de uma atitude cidadã. Quer para eleger nossos representantes, quer para exigir a prestação de contas ou para sacrificar parte da nossa vida em benefício nacional.
Um verdadeiro cidadão é aquele que tem o país no coração, é aquele que morre pelo país, é aquele sacrifica suas ambições em nome do país, é aquele que coloca o país em primeiro plano, é aquele que realmente vive o país com orgulho.
E esse tipo de sentimento para com o país utrapassa as fronteiras da cidadania e penetra tácitamente no estágio de patriotismo e nação, como explica Alexis de Tocqueville (2001:107), durante a missão que fez ao Estados Unidos, em 1831, a serviço do governo francês:
“O que mais admiro na América não são os efeitos administrativos da descentralização, mas os efeitos políticos. Nos Estados Unidos, a prática se faz sentir em toda a parte. É um objeto de solicitude desde a cidadezinha até a União inteira. O habitante se apega a cada um dos interesses de seu país como se fossem os seus. Ele se glorifica com a glória da Nação; nos sucessos que ela obtém, crê reconhecer sua própria obra e eleva-se com isso, ele se rejubila com a prosperidade geral de que aproveita. Tem por sua pátria um sentimento análogo ao que sentimos por nossa família, e é também por uma espécie de egoísmo que se interessa por Estado”.
E aqui na Guiné-Bissau, terra que nos viu nascer, qual tem sido a nossa participação para a existência de um sentimento comum de orgulho de guinendadi? Foram pouco menos de quatro décadas de má governação, qual tem sido o nosso papel como atores de mudança? Foram mais de uma dezena de tentativas e golpes de Estado, qual foi o nosso papel para dizer não a violência e sim ao dialogo e combate de ideias?
A má governação e a continuidade de ação violenta de alteração do poder não são per si a culpa e/ou apenas a responsabilidade dos seus atores, mas também da ausência de sociedade, como organismo de ação, que deve exigir o respeito escrupuloso pelo funcionamento das regras do jogo, independemente dos motivos invocados.
Sente-se que, tanto quanto a nação e o patriotismo, a cidadania vê-se nos comportamentos, no aspecto físico das cidades, no caráter coletivo da sociedade e, sobretudo, na relação de cada um com o todo.
Como dizem os politólogos: não existe nenhuma democracia viva sem espaço público. Ela é o espaço do povo, quer dizer, da sociedade, por isso não há nada melhor que dentro de príncipio de exercício do dever que nos cabe, sermos fiscalizadores do nosso bem-estar social. Pois a cidadania é por excelência a base da democracia.
Muito obrigado!
Rui Jorge Semedo