terça-feira, 26 de novembro de 2013
OPINIÃO: Apenas mais um relatório de Ban Ki-moon
O secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, lá vai redigindo os seus relatórios periódicos, como compete a qualquer funcionário; mas a verdade é que a resolução dos problemas guineenses não depende simplesmente de palavras, requerendo antes acções muito mais efectivas.
Jorge Heitor*
Jornalista
Num relatório dirigido esta semana ao Conselho de Segurança, o secretário-geral Ban Ki-moon afirma que o trabalho das Nações Unidas na Guiné-Bissau continua a ser prejudicado pelos atrasos na conclusão do processo de transição. E que sem um interlocutor eleito algumas das principais iniciativas da Organização tiveram de ficar suspensas. Mas o trabalho da ONU não deveria ser precisamente acabar com os atrasos na conclusão do processo, atrasos que só poderão interessar às Forças Armadas de António Indjai e ao seu amigo Kumba Ialá?
Para além disso, Ban Ki-moon diz que as restrições de recursos motivadas pela suspensão da assistência dos doadores tradicionais estão a prejudicar a capacidade das Nações Unidas para fornecer apoio adequado para reformas institucionais a longo prazo.
Por tudo o que expõe, ele acha imperativo que instâncias nacionais, regionais e internacionais continuem a trabalhar no sentido de se completar o processo de transição que só foi necessário porque as Forças Armadas amigas do chefe balanta Kumba Ialá interrompera o ano passado um processo eleitoral que iria dar à Guiné-Bissau um interlocutor devidamente escolhido pela população.
Fala agora Ban Ki-moon de uma realização atempada, a tempo e horas, logo que possível, de eleições presidenciais "credíveis", sem se manifestar aparentemente muito certo de que elas poderão concretizar-se a partir de Março de 2014, conforme anunciou o Presidente de transição, Manuel Serifo Nhamadjo. É essencial, prossegue ele, que todos se comprometam a alcançar um progresso tangível na reforma do sector da justiça e na modernização das forças de Defesa e Segurança, de acordo com padrões internacionais, promovendo um genuíno diálogo nacional e o respeito pelos direitos humanos.
Há bem mais de cinco anos que todos nós sabemos tudo isso muito bem; só que a generalidade das instâncias guineenses, a começar pelos militares e por alguns políticos, não se tem manifestado minimamente interessado no primado do Direito nem no combate efectivo ao tráfico de drogas e de armamento. As Nações Unidas alegam que continuam empenhadas em contribuir para a criação de um ambiente propício a eleições credíveis e a evitar qualquer regresso à conflituosidade. Mas parece bem que só se elas tivessem no terreno uma força internacional de alguns milhares de homens é que poderiam impedir a actividade impune do crime organizado que faz com que a Guiné-Bissau não leve por diante quaisquer eleições credíveis.
Ingenuamente, Ban Ki-moon pede às autoridades de transição, representadas pelo Presidente ocasional Manuel Serifo Nhamadjo, que "continue a colaborar com as Nações Unidas" de modo a garantir um ambiente pré-eleitoral decente e um resultado credível e pacífico das eleições já por mais de uma vez adiadas. E ao fazê-lo o secretário-geral da ONU esquece que essas autoridades não o são verdadeiramente, pois que quem verdadeiramente tem vindo a mandar nos guineenses durante estes últimos dois anos e meio é o general António Indjai, que fez com que lhe dessem a chefia do Estado-Maior General das Forças Armadas e que nele permanece entrincheirado, desde os tempos do Presidente Malan Bacai Sanhá.
O ingénuo e pouco operativo Ban Ki-moon reitera uma vez mais, no relatório agora em discussão no Conselho de Segurança, o seu apelo a todas as partes guineenses para que adoptem uma nova cultura política que acabe com o cíclico conflito político-militar e coloque o interesse nacional acima dos interesses individuais. Que foi coisa que Kumba Ialá e Manuel Serifo Nhamadjo não souberam fazer, quando não aceitaram o resultado da primeira mão das presidenciais do ano passado, que deu claramente vantagem ao líder do PAIGC, Carlos Gomes Júnior.
Seráfico, Ban Ki-moon fala da necessidade de se construírem consensos e de se garantir a reconstrução do Estado, esquecendo que estas coisas não se conseguem apenas com belas palavras nem sequer com a longa prática diplomática do seu representante pessoal no país, o antigo Presidente timorense José Ramos-Horta. Os recentes incidentes de segurança, que o secretário-geral aliás não deixa de referir, sublinharam uma vez mais a necessidade crítica de se acabar com a cultura de impunidade que vem de muito longe, de há décadas; e que fez com que nunca fossem presentes a tribunal os responsáveis por numerosos assassínios.
"O povo da Guiné-Bissau deve sentir que será feita justiça", observa o secretário-geral, referindo-se a ataques criminosos ocorridos nestes últimos dois meses, como aquele de que foi alvo o ministro Orlando Viegas. Mas, na verdade, aquilo de que os guineenses necessitam é de uma Justiça muito mais ampla, não só referente a dois ou três episódios, mas sim a muitos mais, verificados desde os tempos da luta armada, desde os tempos do assassínio de Amílcar Cabral.
Enquanto isso não for feito, enquanto não houver uma Comissão de Verdade e Reconciliação que passe a pente fino muitos episódios obscuros dos últimos 41 anos, de modo a tentar esclarecê-los de uma vez por todas, as belas palavras de Ban Ki-moon e de José Ramos-Horta serão apenas isso: palavras, palavras, palavras...
(*) Jorge Heitor, que na adolescência tirou um Curso de Estudos Ultramarinos, trabalhou durante 25 anos em agência noticiosa e depois 21 no jornal PÚBLICO, tendo passado alguns períodos da sua vida em Moçambique, na Guiné-Bissau e em Angola. Também fez reportagens em Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe, na África do Sul, na Zâmbia, na Nigéria e em Marrocos. Actualmente é colaborador da revista comboniana Além-Mar e da revista moçambicana Prestígio.