sexta-feira, 1 de junho de 2012

DE TRANSIÇÃO, EM TRANSIÇÃO, O FUTURO DA GUINÉ-BISSAU VAI SENDO ADIADO



Antes de adentrarmos numa análise perfunctória dos efeitos negativos dos governos e das presidências de transição, vamos discorrer brevemente sobre a conceituação de governo. O governo é o terceiro elemento do Estado, a par do território e da população. Ou melhor, para que haja um Estado são necessários os três elementos a seguir: o território; a população e por último o governo.

De acordo com a teoria metafísica da escola francesa, governo nada mais é do que uma delegação de soberania de um povo. Para melhor esclarecer, o governo é a expressão da soberania popular. Esta escola reforça a ideia de que o governo seria a soberania em si colocada em prática. Já na visão alemã, o governo traduz-se numa característica intrínseca à personalidade abstrata do Estado.

Com base nas orientações do filósofo do direito e jurista francês, Léon Duguit, o termo governo representa dois significados: o caráter coletivo, sintetizando uma gama de centros de competências funcionais, que sustentam a vida política do Estado. Já em stricto sensu, ganha apenas o significado de poder executivo.

Conforme supramencionado, o governo é a expressão da soberania de um povo. É a manifestação da vontade popular, variando apenas de acordo com os mecanismos utilizados por cada país para sua escolha. Nas democracias de modelo ocidental, a escolha se dá através do sufrágio universal, igual, direto, secreto e periódico. Ou seja, a escolha dos governantes se dá mediante eleições livres, justas e transparentes.

Daí dizer que, um governo ilegal ou ilegítimo, significa uma subtração da vontade de toda uma sociedade. Isso vale para todos os tipos de governos, inclusive para os de transição. Assim sendo, deve ser sempre observado em quaisquer circunstâncias, os critérios estritamente legais ou constitucionais para as escolhas dos governos, de modo que não ocorra usurpação do poder.

Ultrapassada a questão de ordem conceitual, é percebido claramente que os governos transitórios devem representar apenas uma questão de necessidade e não uma regara, sob pena de ficar sem operacionalidade, o que caracteriza um governo programático e sufragado.

Aqui, cabe a elucidação de que o governo programático e sufragado é aquele que provém das urnas, onde um determinado partido político ou coligação elabora o seu programa de governo, de modo geral deve conter aspectos políticos, econômicos e sociais e o submetem ao sufrágio popular. Trata-se de um governo resultante das urnas, que geralmente possui uma agenda propositiva de governação, ao contrário do que ocorre com o de transição, dada a sua própria natureza emergencial.

Adentrando profundamente na questão guineense, fica evidente que todos os ambientes políticos que deram ensejo aos governos de transição ocorreram sempre por questões de disputa política de baixo nível e não por questão de acidente de percurso. Alguns dos nossos políticos ignoram a efemeridade dos governos de transição, da mesma forma que pouco se importam com as limitações de um presidente de transição, sendo que este último não pode, sob nenhum aspecto, praticar vários atos dentre os quais o de nomear ou exonerar um primeiro ministro.

Nesse contexto, essas atitudes irresponsáveis ganharam guarida com a CEDEAO “nomeando” um presidente de transição. E, este nomeou um primeiro ministro mesmo não tendo poderes para tal. Daí começa a espiral de inconstitucionalidade em torno dos atuais órgãos de transição, como passaremos a ver.

Um presidente de transição, só poderia ser escolhido nos termos constitucionais se fosse presidente do parlamento, ainda que interinamente. Mas como o Comando Militar já havia anunciado a dissolução do parlamento, como forma de consolidar o golpe, posto que do contrário, significaria a manutenção do quadro jurídico que sustentava o governo deposto, a solução parlamentar revelou-se inapropriada para o cenário por eles desejado.

Diante dessas circunstancias, aliadas ao fato do PAIGC, partido majoritário no parlamento, ter retirado a confiança política ao atual presidente de transição, que também estava no exercício interino da presidência do parlamento, qualquer solução que passasse pela constitucionalidade, teria que ser precedida por uma breve eleição da nova mesa diretora da casa, dentro do seu regimento interno, objetivando a escolha do novo presidente do hemiciclo, e este sim, poderia ser empossado na presidência interina do país.

Com isso, a escolha do presidente de transição da Guiné-Bissau, fere a constituição. Além do fato de ter sido “indigitado” e empossado por quem não tinha competência para tal, no caso concreto a CEDEAO.

Quanto ao poder executivo de transição, a mácula é ainda maior. Primeiro, por ter sido nomeado por um presidente de transição cuja indicação e investidura no cargo são inconstitucionais. Em segundo lugar, mesmo que a escolha do presidente de transição estivesse em sintonia com o nosso ordenamento jurídico, não teria poderes para nomear o primeiro ministro e consequentemente o governo, devido às limitações de ordem constitucional.

Para além das circunstancias acima apontadas, não existe na nossa constituição a previsão do governo de transição, a não ser que se diga de uma vez por todas, que a atual composição do governo de transição em nada tem a ver com a constituição. A única possiblidade constitucional de se ter um governo sem sustentação parlamentar é quando ocorre a dissolução do parlamento, enquanto não toma posse o novo governo resultante de eleições legislativas antecipadas, assim o chamado governo de gestão vai dando continuidade à administração pública.

Ainda quanto ao atual governo de transição da Guiné-Bissau, vale tecermos algumas considerações jurídicas e políticas. Não há nenhuma possibilidade jurídica de se haver um governo constitucional, ainda que seja sob a roupagem de transitório, sem a participação do partido com maior representação parlamentar, que no caso em concreto é o PAIGC. Daí, que nenhuma solução parlamentar ou constitucional poderia passar sem uma negociação política com o partido de maior bancada no parlamento. Pois, caso contrário, o governo transitório nasceria inconstitucional, como de fato nasceu.

Sob esse aspecto, nos parece que o PAIGC entendeu muito a dimensão política e jurídica de não aceitar participar no governo de transição em funcionamento na Guiné-Bissau. Sabe muito bem que basta ficar de fora do governo para que a retórica da constitucionalidade da solução da crise seja posta em causa, sem contar o significado político perante o eleitorado que vai entender que o partido foi destituído do poder, apesar de ser majoritário no parlamento.

Esse gesto do PAIGC colocou os protagonistas da “solução” da crise política numa encruzilhada jurídica. Pois, se o partido majoritário participa ou lidera o governo em questão, a solução poderia até se chamar de constitucional, no entanto, a atual legislatura teria que ser respeitada. Isto é, em novembro do ano em curso teríamos eleições legislativas, porque a solução constitucional pressupõe cumprir o prazo da legislatura e organizar as eleições para escolher o novo governo. Por outro lado, se o PAIGC não aceita (como de fato não aceitou) participar e nem liderar o dito governo de transição, a solução da CEDEAO fica, irremediavelmente, inconstitucional. Logo, consolida-se o golpe de Estado.

É nesse cenário que se vive no nosso país!

Contudo, há que se depreender algo com a atual situação da crise politica da Guiné-Bissau. O fato de que com a geopolítica internacional que se emergiu com fim do mundo bipolar, não existem mais motivos para que as grandes potências mundiais apoiem os governos combalidos, como acontecia no passado, objetivando apenas angariar números de aliados para melhor enfrentamento no campo ideológico. Hoje, os países valem tanto quanto pesam as suas economias. Um país pobre como o nosso e com governo fraco vai sentir  os efeitos negativos do isolamento, não só por imposição de sanções por parte de certos países ou blocos econômicos. Mas sim, por falta de financiamento externo. E assim, o povo é quem paga a fatura a qual costuma ser pesada.

A atitude subreptícia da CEDEAO, na “solução” da crise política da Guiné-Bissau pode até agradar algumas pessoas que de alguma forma vão tirar proveito da atual situação, mas de modo geral a nossa débil economia vai ressentir-se dos efeitos de falta de financiamento externo. A leitura desse cenário é simples, porquanto muitos países da união europeia enfrentam a forte crise fiscal, precisando de financiamento para suas economias, não vão disponibilizar recursos financeiros para as autoridades transitórias, das quais não podem cobrar planos de governos e nem metas a cumprir.
 
Essa falta de financiamento já se faz sentir no país, onde as novas autoridades já cogitam a possibilidade utilizar o fundo destinado à exportação de castanha de caju, para pagar os salários do funcionalismo público. Trata-se de uma medida ruinosa para a nossa economia, pois atinge o setor mais importante, hoje, na economia do país.

Devemos ter em conta que no plano internacional, as relações entre nações levam em consideração a governabilidade e a continuidade das políticas mestras de um determinado Estado. A constante solução de continuidade na governação prejudica não só o país sob o ponto de vista interno, mas também no aspecto externo, pois, é difícil estabelecer parceiras com países cujos governos não terminam os mandatos, como acontece na Guiné-Bissau, onde nenhum governo ou presidente eleito terminou o mandato.

Isso evidência de sobremaneira uma ruptura constante na condução dos destinos do país, na medida em que não se tem nenhuma segurança jurídica e institucional, de que um bom projeto em curso vai ser dado sequencia por um governo de transição, que de um dia para o outro chega ao poder, caracterizado sempre por arranjos políticos esdrúxulos, obedecendo apenas à lógica de ascensão pessoal ao poder.

Uma boa lição em termos de governos democráticos é que, um governo deve ser eleito com um programa definido, sob uma perspectiva temporal correspondente a uma legislatura. Isso confere maior garantia ao cidadão em saber que programa está a escolher e até quando vai o mandato dos seus executores. Com isso, o cidadão passa dispor os mecanismos de fiscalização e cobrança dos resultados prometidos durante a campanha eleitoral. Mas quando dorme, acorda e depara com um governo que não escolheu (além deste ser naturalmente limitado), o cidadão eleitor não tem como cobrar nada de tal governo, por não ter sido eleito e nem ter um programa de governo.

É de se salientar, que esses atropelos políticos é substrato de uma Guiné-Bissau pensada com cabeça pequena. Devemos recuperar a nossa capacidade de fazer as coisas baseada na nossa realidade, na nossa cultura. Devemos assumir o protagonismo da nossa própria história. Não podemos estar em nenhuma organização internacional sempre no pelotão traseiro. Não devemos imaginar que a visão dos outros é sempre melhor que a nossa, mesmo quando a futuro do nosso país é que está em questão.

Temos o dever moral de traçar uma estratégia nova para o nosso país, e, de desenvolver capacidade de diálogo constante para solucionar os problemas que pululam na nossa sociedade. Devemos resgatar o espírito de unidade nacional, que outrora nos conduziu à independência. Urge a necessidade de entendermos que a pluralidade de opiniões e o espírito de tolerância são principais nutrientes para uma democracia saudável.

Devemos cultivar e preservar a cultura da paz, para que possamos reunir condições de atrair investimentos internos e externos, estimular a produção popular, de modo a produzir riquezas capazes de combater a pobreza e diminuir a nossa dependência externa. É premente dinamizarmos o setor produtivo privado com vista a reduzir o peso do Estado na economia, posto que desde a nossa independência até os dias que correm, a expectativa de empregabilidade sempre passa pela ocupação de cargo ou desempenho de função pública.

Por fim, nunca é demais lembramos que os interesses individuais e partidários devem terminar onde começam os interesses nacionais.
 
Alberto Indequi
Advogado e Empresário