sábado, 12 de maio de 2012
OS DESAFIOS DA AFRICANIDADE E O ESTADO MODERNO
Quando, nos anos cinquenta, do século passado, diversos grupos de elites intelectuais africanos vindos de várias universidades europeias ou oriundas das próprias burocracias coloniais em África reivindicavam a independência do continente do jugo colonial, independentemente das linhagens ideológicas por eles perfilhadas, pensaram os Estados africanos inspirados nos moldes europeus. Isso deveu-se a uma realidade na qual as suas consciências políticas foram sedimentadas.
Por outras palavras, o modelo de Estado pensado para África pelos seus idealizadores é de feitio europeu, variando apenas de acordo com as ideologias assumidas pelos seus dirigentes, sejam elas marxistas ou capitalistas.
Vale ainda ressaltar que em que pese o ímpeto revolucionário que marcou a época, os heróis das nossas independências estavam cientes das peculiaridades culturais e sociais de cada um dos novos países que pretendiam criar. De igual modo, sabiam também dos desafios econômicos a enfrentar. As independências foram alcançadas, em alguns casos de forma pacífica e menos traumática, e, em outros, mediante o recurso às guerras longas e traumáticas com passivo social elevadíssimo.
Após esse período, começaram os primeiros desafios no que tange à organização dos novos Estados contando com parcos recursos financeiros e humanos; com o compromisso de respeitar e preservar as fronteiras traçadas ao saber dos interesses coloniais, uma vez que houve cisões de vários grupos étnicos ou religiosos no delineamento dessas fronteiras, separando consequentemente algumas “nações autóctones” que não se reconheciam dentro desses novos países, mas sim, dentro de uma comunidade extirpada. Como administrar e organizar as instituições públicas, dentro de um equilíbrio em que todos os grupos se sentissem confortavelmente representados e sem perder ao mesmo tempo feições republicanas.
Isso não foi fácil, pois a despeito de toadas as retóricas nacionalistas, algumas lideranças emergentes nos primeiros anos de Independência do continente, ainda “embriagados” pelo sucesso das revoluções independentistas, cometeram (por ações ou omissões) erros que desembocaram em guerras civis fraticidas, que em alguns casos acabaram por redundar na criação de novos Estados, haja vista que os seus respectivos povos não se sentiam confortados naquelas fronteiras herdadas das antigas potências coloniais. Para estancar os processos de desintegrações territoriais, surgiram em contraposição a tal fenômeno, ditaduras tenebrosas, e, muitas delas corruptas, com poderes alicerçados em muitos casos em bases tribais, religiosas ou regionalistas e etc., sendo que em todos os casos, contavam sempre com a cumplicidade de um dos blocos econômicos que compunham a então geopolítica mundial.
Com o fim da guerra fria, nos finais dos anos noventa, não restou mais dúvida quanto ao modelo de Estado que triunfou a nível mundial. Assim, prevaleceu o Estado moderno e burguês, de matriz europeia, caracterizado pela democracia pluralista, liberdade de expressão, proteção aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, respeito e proteção à propriedade privada, economia de mercado com a presença ou a intervenção moderada do poder público, e sem se esquecer da sua forte vertente social.
Este modeElo de Estado também tem como umas das suas principais marcas - a institucionalização. Ou seja, a criação de centros de competências funcionais fortes, totalmente republicanos e consequentemente despersonificados. Portanto, capazes de resistir às mudanças de governos ou de pessoas sem declinar de suas funções, sempre na perspectiva de que as pessoas são passageiras enquanto o Estado é permanente. O Estado que de acordo com várias teorias que fundamentam a sua existência, detém o monopólio do poder coercitivo sobre o cidadão e da organização da sociedade através de uma burocracia especializada. Tudo nos termos da lei e da ética.
Aí, começa o grande desafio em aprumar os países africanos e os seus dirigentes, aos novos desafios democráticos. Quebrar vários paradigmas da nossa africanidade, em que geralmente somos ensinados a respeitar os mais velhos, por mais que estejam errados em suas posições ou colocações. Adequar as nossas instituições tradicionais a este modelo e Estado, a partir de uma simbiose nada fácil, contudo possível, observando as devidas proporções que a equidade requer.
Superar os desafios alimentados por sentimentos tribais. Implantar valores decorrentes de um conceito da nação, que requer uma homogeneidade de pensamento quanto à pátria.
Convencer as populações através de uma educação cívica, com o escopo de sensibiliza-las a votarem nas pessoas em função dos seus ideais republicanos, em detrimento de suas origens étnicas, raça, cor, sexo ou regiões de procedência. Fazer com que as pessoas entendam a importância do voto consciente e responsável, desprovido de sentimentos menores. Fazer com que as ditaduras de décadas se arvorem em democracias. Como fazer com que as estruturas político-militares ardilosamente estruturadas a perpetuarem pessoas, grupos étnicos, religiosos, ou até, econômicos no poder, a se determinarem de acordo com os ideais democráticos.
Pra acelerar o tal processo, os países ocidentais passaram a subordinar qualquer ajuda ou financiamento aos países africanos, à implementação da democracia.
Mesmo assim, houve e ainda há uma resistência muito grande de certos setores africanos em ajustarem-se aos mandamentos democráticos. Registam-se com frequência refluxos democráticos, mediante golpes de Estado, usos inescrupulosos de mais diversas variáveis que caracterizam as nossas culturas, que vão desde regionalismo, tribalismo, racismo e a dificuldade de firmar um conceito e espírito republicano no ceio das forças armadas. Não raras vezes, são utilizadas como o combustível para o enfraquecimento da democracia, as diferenças históricas entre tribos, raças ou religiões.
Ultrapassada a questão meramente formal ou conceitual, uma vez que vários países africanos implantaram a democracia somente nos seus aspectos formais, com o discurso totalmente divorciado da realidade autoritária que os seus lideres tratavam os seus adversários e as instituições da república. Muitos desses líderes trataram logo de moldar legislações sob a encomenda, com vista a afastar sumariamente os seus oponentes, promovendo inovações aos conceitos jurídicos clássicos, mediante expedientes pouco democráticos.
Por exemplo: a fixação do tempo mínimo que um cidadão deve residir no país para poder candidatar-se a presidente da república, quando as próprias ditaduras é que contribuíram em grande medida para o engrossamento das diásporas. Ou por exílio, dado a perseguições políticas, ou por empobrecimento das populações, que acaba por ver na emigração a possibilidade de mudança de vida. Esse artifício traduz-se no locupletamento da própria torpeza, pois, força um cidadão a ter que viver fora do seu país e quando regresso é vedado de exercer os seus direitos políticos, justamente por ter residido no exterior.
Outras legislações restritivas ao exercício de direitos políticos, vão ainda mais longe, criando obstáculos de origem genealógica. Por exemplo, para candidatar-se a presidente da república, não basta ser cidadão nato. Tem que ser da terceira geração a nascer no país ou ter seus quatro avós também nascidos no país. São medidas discriminatórias e antidemocráticas, pois estabelecem preceitos jurídicos com a presunção de que quanto mais profundas forem raízes genealógicas de uma pessoa, mais sentimento nacional esta teria. Isso sob a alegação de que mais comprometimento teria com as causas da nação, o que é um engodo dos mais vis. Pois, trata-se de uma abertura meramente cosmética.
Mesmo com todos os atropelos e desafios árduos, a África vai lutando para firmar-se como um continente democrático, com alguns exemplos bem sucedidos. O que é encorajador.
Dispõe de diversos fóruns de concertações sub-regionais, SADC, África austral, MAGREB, para os países do norte d’África, a exemplo de CEDEAO, África ocidental, sendo que esta última revelou-se incompetente ou cúmplice de golpistas na crise politico-militar da Guiné-Bissau. Temos ainda registado o fortalecimento da União Africana, como entidade máxima em termos políticos a nível do continente. Como africanos que somos não devemos aceitar e nem fazer perpetuar a imagem exótica que muitos olhares de fora lançam sobre nós, argumentando de forma barata que o exercício do poder político no nosso continente tem que ser necessariamente pela força bruta, como se não tivéssemos a capacidade de aperfeiçoar as nossas instituições e viver em ambientes de paz.
As nossas democracias não precisam ser cópias fieis das europeias, mas precisamos ter sociedades democráticas, marcadas pelo espírito de tolerância, onde as leis sejam respeitadas, a vontade popular se sobreponha aos interesses mesquinhos, respeito aos direitos humanos, ao meio ambiente, gestão responsável das nossas riquezas. Onde ainda, possamos construir nas diversidades as identidades nacionais para os nossos países, sem perder aquela solidariedade que marcam as nossas estruturas familiares.
Em vez de ficarmos a lutar obcecadamente pelo poder a qualquer custo, mesmo que tenhamos que atropelar a vontade popular, deveríamos canalizar o nosso espírito guerreiro para lutarmos contra a pobreza que assola o nosso continente, contra a desnutrição e a mortalidade materna-infantil, contra a falta de saneamento básico, contra a falta de moradia digna, contra a seca e desertificação, o desemprego, o analfabetismo, a ignorância e tantos outros desafios que pairam sobre nós.
Não devemos nos alinhar com medidas antidemocráticas, só porque foram desferidas contra os nossos desafetos políticos ou pessoais. A defesa da democracia deve ser uma questão de princípio e não de conveniência ou de oportunismo político. Que as nossas irreverencias e informalidades culturais não se choquem com os rituais que a democracia requer e que qualquer ocupante de função pública paute a sua conduta com as práticas compatíveis com a liturgia do cargo. “SUB LEGE PROGREDIAMUR-SOB A LEI PROGREDIMOS”
Alberto Indequi
Advogado e Empresário