quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

CRÓNICA: Encontrar, num dia, duas mãos cheias


Sentado, vi-a passar. Ninguém sabe, neste pedaço de terra, como ganha a vida. Havia, no entanto, quem apostasse que se governava vendendo coisas insignificantes para quem as não comprasse.

Vestia de preto e o seu tímido rosto fechado ia bem com a tonalidade do pano. Chamaram-na. E veio, envergonhada, os olhos pregados no chão de terra vermelha. «Nunca usei nada que já não tivesse sido usado», disse. E depois sorriu, um sorriso maior que mil trindades, mostrando os dentes brancos e as gengivas quase púrpura.

Os vestidos que quase nunca usava eram-lhe dados, como quase tudo o resto que lhe pertencia, e nunca lhe assentavam bem. Estavam, ou apertados ou largos ou ainda compridos de mais.

O seu rosto era pálido. Estava vincado pela vida e pelos seus riscos. Notava-se que estava por sua conta e risco. Talvez não lhe surpreendesse ou não gostaria que fosse de outra forma. Era feliz assim.

Aqui, é o tempo que nos amolece - estou em Varela. E quando isso acontece, lembramo-nos de como a vida continua em todo o seu esplendor para além da nossa fadiga.

A clausura a céu aberto a que me sujeitei durante oito dias, transformou-me num outro homem. Escuto muito, e mais. Falo pouco e baixo e com cadência. Não tenho pressa, terei cuidado.

Aqui tudo é escuro, e, assim sendo, não há ciências exactas. O que há é isto: a grande escuridão que se instala quando o mar engole o sol e no céu navegam estrelas. Oito dias num clima quase invernal (choveu na madrugada de domingo...). O nevoeiro cobria tudo à volta que mais parecia uma noite branca.

Vultos na noite escura (quero dizer, branca) vagueiam pelas estradas de terra como assombrações. Eu, atordoado com o frio, vejo a hora marcar passo. Pareceu-me então um duvidoso privilégio esta solidão auto imposta, mas enfim, é realmente verdade que não tenho escolha.

Continuo sentado a escrever. O 'manuscrito' soma já 105 mil caracteres e é um quase livro. E enquanto escrevo já a noite vai longe. Recupero das desilusões e vivo de emoções. A fadiga que não me larga, o quase deixar de acreditar, o tentar reatar o fio da vida que teima em dar nó.

Pensei em tudo. Mas nada digo. Sou um túmulo. E se um dia alguém quiser escrever a minha biografia só encontrará silêncios.
António Aly Silva