sexta-feira, 7 de maio de 2004
Preito de singela homenagem (aos meus avós)
Bissau, um mês qualquer entre Maio e Outubro. Choveu toda a manhã. Podia ouvir a chuva bater nas vidraças das janelas e até o murmúrio secreto das pessoas. E sentia o agradável odor do café que a minha Avó preparava todas as manhãs. E só hoje me dei conta de que todas estas pequenas coisas são coisas boas. Desejava chegar aos domingos só para ouvir o ruído do fogão a petróleo (o gás ainda era um sonho…) e, sobretudo, a minha Avó a conversar baixinho com o meu Avô. Conversavam acerca do correr dos dias e lembravam-se do tempo em que eram jovens em flor. Daqueles dias exaltantes, dos bailes de rua e de salão. «Foram bons tempos, esses», acrescentava o Avô. O meu Avô é um homem pequenino e de mãos bonitas, bem talhadas de resto, pese embora todo o trabalho que suportou durante a sua longa vida. Ainda mantém uma voz fina, bem modulada. Usava um chapéu branco que, com o passar dos anos, apresentava-se todo remendado com arame fino que ele, pachorrentamente, desfiava dos fios de electricidade. Ria muito e com frequência e recusava boleias. O pretexto era sempre o mesmo: «a melhor receita para envelhecer com dignidade é caminhar». E lá ia ele todo pomposo, rua abaixo. Também dizia, a propósito de viver muito (contava na altura cerca de 70 anos), que chegara a essa idade porque «gostara muito de mulheres. Ainda gosto, claro. Gosto mas já não posso, se é que me faço entender» - o meu Avô teve 21 filhos. Bebia um cálice de whisky por semana, aos domingos, e de um só trago embora se mostre um perito no assunto. «Só se deve beber entre e com amigos. Quando um homem bebe só, algo está mal, algo não vai bem dentro dele». E finalizou com esta frase lapidar: «quem bebe só está a conviver com a morte que lhe mora na alma»… A minha Avó (que já morreu) gostava muito do meu Avô. Gostava mesmo muito e dizia-lho sorrindo enlevada (ou embevecida?), não sei bem. E ele manifestava o seu contentamento afagando-lhe as mãos e beijando-a com suavidade. «Quando a gente não gosta, não deve ocultar os sentimentos e muito menos as emoções». Escutava-os feliz e adormecia no seu colo como uma criança que quer saber coisas sobre as estrelas. Hoje, o meu Avô tem a respeitável idade de 101 anos e vive em Aveiro.