terça-feira, 1 de outubro de 2013

Aly Silva, em entrevista exclusiva ao jornal angolano 'O País' (última parte)


O País  (2)

Heróis mortos um por um

Porquê? Ter-se-á tratado de uma encenação?

Foi tudo por ordem do Malam Bacai Sanhá, o presidente que morreu. Aliás, a ordem que ele deu foi para matar o Carlos Gomes Júnior. E quando ele telefona para o Estado-maior a informar-se sobre o Cadogo diz-lhe o Indjai “ele está aqui ao meu lado”, e então dá ordens para o deixarem ir embora. Há por aí, a circular, muitas versões, e todas mal contadas, de como se passaram as coisas. Com o Zamora Induta, que foi meu colega de tropa, foi o que aconteceu. Fomos incorporados juntos em 1986, e ao contrário do que fazem hoje, indo à Tabanka escolher os futuros militares, foram buscar-nos aos liceus, numa tentativa de introduzir sangue novo e gente com potencialidades de formação nas Forças Armadas. Éramos jovens com o 11º e o 12º anos de escolaridade.

Então, já houve tentativas sérias de reformar as Forças Armadas Guineenses…

Sim. Houve essa tentativa, mas o Nino Vieira foi travado. Mas é preciso entender uma coisa: isso acontece porque os militares que hoje se armam em donos do país são gente que nem fez a guerra de libertação. O António Indjai tem 50 e poucos anos e não pode ter participado. O Daba na Walna, que é o disparatento-mor do Estado-Maior, tem quarenta e tal anos e também não pode ter feito a luta de libertação. Por isso pergunto, então, como é que pode ser general? Como é que essa gente pode ter a pretensão de querer falar em nome dos combatentes da luta de libertação e reclamar para si privilégios que resultam dessa condição, se nunca, como militares, fizeram nada pelo país?

Então, o mito dos grandes guerrilheiros que habitualmente se associa às Forças Armadas guineenses não passa, hoje em dia, de uma mistificação?

Os grandes guerrilheiros guineenses acabaram por ser todos mortos nesta última década e meia. Estou a falar do Ansumane Mané, do Tagma na Wai, do Tchambú Mané, do próprio Nino Vieira e de vários outros. Uns morreram na guerra civil que se seguiu ao golpe de Estado de 1998, outros acabaram por ser eliminados nas sucessivas inventonas que ocorreram depois. Foram sendo mortos um por um, e estes que lá estão agora não passam de impostores.

Quer dizer que a actual instituição militar guineense não pode ser considerada herdeira do que durante muito tempo foi designada como “as gloriosas FARP” (Forças Armadas Revolucionárias do Povo), do tempo de Amílcar Cabral e dos primeiros anos da independência?

Não. Os que pertenceram às “gloriosas FARP” estão todos sete palmos debaixo do chão. A actual hierarquia militar é formada por impostores, que chegaram ao poder porque pegaram em armas e derrubaram os antigos. Tomaram de assalto a instituição militar, e estão a estragar o nome da tropa guineense.

MISSANG era acto de gratidão

Esta entrevista, sendo uma conversa de evocações que envolve necessariamente sentimentos e emoções, não pode seguir um rumo linear, e somos obrigados a voltar atrás quando necessário. É o caso agora, porque lhe vou pedir que retomemos a questão da MISSANG. Na sua opinião, o que é que correu mal?

A MISSANG resultou de um acordo assinado entre os dois países, e o próprio António Indjai esteve envolvido no processo. Previa a reforma das Forças Armadas, na sequência do fracasso de um general espanhol que a União Europeia mandou à Guiné-Bissau com o mesmo objectivo. Os angolanos chegaram, fizeram um levantamento e começaram a deitar abaixo quase os quartéis para construírem, de raiz, novas e modernas instalações militares, onde não chovesse dentro das casernas, que tivessem água corrente e que oferecessem condições dignas para a tropa. Para se ter uma ideia da dimensão do projecto, basta dizer que a MISSANG gastava na Guiné-Bissau, só para o funcionamento da própria missão, entre 40 a 50 mil dólares por dia. Até alimentavam os militares guineenses, o que não estava no acordo. É claro que esse dinheiro não era nada para o Estado angolano, uma vez que só o orçamento anual do exército daquele país cobre três anos do Orçamento do Estado da Guiné-Bissau. Por isso, quando digo que não existe Estado na Guiné-Bissau, este dado confirma o que digo. Voltando ao assunto da MISSANG, demoliram-se o quartel da marinha e outras instalações militares, e até as instalações da Divisão de Trânsito foram deitadas abaixo para se construir uma nova infra-estrutura. E quando se viu que a reforma era mesmo para valer, os problemas começaram a aparecer e alguns militares, com medo de perder o seu protagonismo, ilegítimo porque conquistado à força, e movidos por interesses completamente diversos dos da Guiné-Bissau, começaram a acusar Angola. As imputações eram que Angola levou armas e outros equipamentos militares, mas tudo o que a MISSANG desembarcou na Guiné estava previsto no acordo, e tudo foi apresentado ao Estado-Maior. Mostraram as armas, os tanques e os meios aéreos e navais, e disseram aos guineenses que iam receber formação para operarem aqueles equipamentos que, posteriormente, reverteriam a favor do exército guineense. Havia inclusivamente helicópteros, e para a sua utilização foi dada formação a pilotos que já não voavam há anos. Do acordo constava igualmente o fornecimento de aviões caça MIG, completamente novos, que seriam entregues ao exército da Guiné-Bissau. Foi nessa altura que MISSANG teve conhecimento de que se estava a preparar um golpe de Estado, e o embaixador angolano confrontou com essa informação os que viriam a ser os autores do golpe. Estes negaram, naturalmente, mas pouco tempo depois aconteceu. Angola já tinha, inclusivamente, avisado o Carlos Gomes Júnior e o presidente Malam Bacai Sanhá, na convicção de que este último não sabia de nada, o que não correspondia à realidade, como se veio a provar. O Cadogo só não se dirigiu à embaixada de Angola para se proteger para não criar mais problemas. Ele permaneceu em casa, deu ordens ao seu corpo de guarda-costas para não reagir se viessem prendê-lo e, assim, evitarem ser mortos, e o golpe aconteceu com as incidências que todos conhecem.

E assim morreu a reforma das Forças Armadas guineenses e se abortou a MISSANG.

Foi o que aconteceu. E garanto-lhe que o que os militares iriam receber como pensão de reforma nem eles tinham ideia. Precipitaram-se e deram o golpe, colocando o país na situação caótica em que se encontra e ficando privados de uma reforma digna e uma aposentação tranquila. E quando o último homem da MISSANG deixa o Hotel Palace, comprado para alojar a missão, instalou-se aí a embaixada angolana e, nas antigas instalações desta última, a Bauxite Angola, a empresa que ia explorar as jazidas desse mineral em Farim e que já tinha construído uma cidade para os trabalhadores da futura exploração viverem. Tudo isso morreu, assim como o Porto de Buba, cuja concessão já estava feita e a desmatação da área concluída, e que já ia começar a ser construído. Neste processo, o que as pessoas não conseguiram ver é que, independentemente das posições que se pudesse ter em relação à MISSANG, o resto eram negócios, e que, se algum dia as parcerias acabassem, os angolanos não levariam o porto de volta para o seu país. Mas também, lá está: quando quem dirige as Forças Armadas são analfabetos, é o que acontece.

Guineenses passam fome

O que é que move o António Aly Silva a ter este discurso de amargura, tristeza e crítica contundente em relação ao que se passa na Guiné-Bissau?

Politicamente, nada. Já tive intervenção política na Guiné-Bissau quando pertenci ao PRS. Nas eleições de 2009 eu era do partido, mas vi coisas de que não gostei e saí. Por exemplo, à saída da casa do Kumba Yalá para acções de campanha, em todos os carros havia kalashnikovs e isso chocou-me. Disse-lhes que no meu carro não entrava arma nenhuma porque eu não ia para uma guerra e, sim, para uma campanha política. Por isso, apresentei a minha demissão e saí. Politicamente, nada me move, não quero cargo nenhum na Guiné e nunca vou ser nada, em termos políticos, naquele país. Agora, ser cidadão e lutar por direitos, isso ninguém me tira. No dia em que me derem um tiro, morro e acabou. Mas enquanto for vivo vou reclamar em nome do povo, porque o que me interessa não é aquela meia dúzia de disparatentos que lá estão. As minhas verdadeiras motivações estão enraizadas no sofrimento do povo, que hoje em dia até passa fome, o que é inconcebível. Como é que se pode falar de fome num país como aquele? As nossas potencialidades marinhas são enormes, mas as nossas riquezas são roubadas todos os dias; temos muito mais terras cultiváveis, por exemplo, do que o Senegal; temos mais área de água do que de terra; temos uma centena de ilhas; temos 300 quilómetros de costa; e temos um arquipélago que foi declarado Reserva Mundial da Biosfera. A Guiné-Bissau apenas precisa da ajuda da Comunidade Internacional para se reerguer e afirmar-se, mas terá que ser uma ajuda efectiva, firme e consistente. Defendo uma força de estabilização com um mandato por tempo indeterminado mas com a duração necessária para o país arrefecer. Isto não pode ser feito em menos de 10 anos. Nesse período, seria possível colocar à frente dos destinos do país os que sabem, e dar instrução aos que não sabem para poderem contribuir de forma útil para o bem-estar comum. O que devíamos todos fazer era reconhecer, clara e humildemente, que falhámos, e aceitar a ajuda necessária para nos recompormos.

Qual é, neste momento, o estatuto legal de António Aly Silva?

Sou um guineense revoltado. Saí da Guiné um mês depois da minha prisão, com problemas de saúde, e fui para Portugal. Tive de fazer três cirurgias para debelar as sequelas dos maus bocados que passei aquando da minha prisão, altura em que fui espancado e levei coronhadas na cabeça. Depois de ter estado em Portugal regressei à Guiné, um mês depois.

E como é que foi acolhido?

Com respeito, porque não admito ser acolhido de outra forma no meu país. Ou me tratavam com respeito ou teriam de me prender e espancar novamente. Permaneci na Guiné-Bissau até Outubro, quando decidi fugir por causa de ameaças, nomeadamente de tiros de bazuca. Neste momento não sou exilado nem sou asilado, sou apenas um cidadão da Guiné-Bissau e da CPLP a tentar ver se retoma a sua vida. Se tivesse dinheiro ia para Angola, onde até tenho família.

O melhor estadista africano

Isso depende do quê? De uma proposta de trabalho?

Sim, e iria para lá de bom grado, até porque, como já disse, tenho lá família. Também fui casado durante 10 anos com uma angolana, do Lubango, de quem tenho um filho. Se surgisse essa tal proposta ia, sem pensar duas vezes. Vejo Angola com muita simpatia e digo-lhe porquê: porque é um país de futuro e porque, para mim, o presidente angolano é o melhor estadista africano. Chamem-lhe o que chamarem, é assim que o vejo. Tem defeitos? Tem, certamente, porque todos temos. Mas, para mim, o José Eduardo dos Santos tem-se revelado o maior estadista da actualidade, porque manteve o país a funcionar durante longos anos de uma guerra cruel e destrutiva, e conduziu Angola à fase actual, que é bastante auspiciosa. Ser estadista, na minha óptica, é fazer aquilo que o presidente angolano faz. Ele tem o pulso do país. E Angola revela ter uma capacidade de regeneração que nenhum outro país africano demonstrou. É um país fabuloso e tão grande que há sítios onde nem a guerra conseguiu chegar.

Para si, a paz em Angola é irreversível?

Completamente. É tão irreversível a ponto de o presidente angolano ter tido a iniciativa, que revela grande coragem e hombridade, de nomear um ex-general da UNITA como Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas. Isto também mostra que a inclusão, que nunca chegou a acontecer na Guiné-Bissau, é uma realidade em Angola. Há aqui uma lógica de inversão. Angola começou muito mal mas, hoje, está no bom caminho. No meu país, onde tudo começou bem e onde a guerra de libertação foi a mais bem-sucedida do mundo, deu tudo errado, e é uma tristeza reconhecer isso. Mas temos de o fazer e de dizer em voz alta que falhámos em toda a linha, para podermos depois começar do zero com alguma probabilidade de êxito.

Acredita que, nessas circunstâncias, a Comunidade Internacional não hesitaria em ajudar?

Falei recentemente com o Carlos Lopes, que é o guineense com maior projecção nas Nações Unidas, e ele disse-me que a Guiné-Bissau não estava na agenda. A Comunidade Internacional quer ajudar o país mas que não o faz porque, com o que se está sistematicamente a repetir, toda a ajuda resulta em insucesso…

Essa é a opinião de Carlos Lopes, que já foi Secretário-geral Adjunto da ONU…

Sim, e acredito que ele algum dia será Secretário-geral das Nações Unidas. Actualmente ele tem um handicap, que é o de ser cidadão de um país pequeno e insignificante onde, ainda por cima, acontecem reiteradamente estas situações. Isto é mais uma demonstração de como o país está a ser prejudicado pelos militares. Mas a Guiné-Bissau tem que ser ajudada como Timor-Leste foi. E espanta-me a atitude actual de Timor-Leste em relação à Guiné. Saiu completamente fora do rebanho da CPLP e pôs-se ao lado dos golpistas. Compra dívida soberana de Portugal, que não precisa tanto como nós, e dá à Guiné dois milhões de dólares. O Governo timorense está a gozar connosco, mas tem que dizer, no seio da CPLP, qual é o seu papel e a sua posição oficial em relação à Guiné-Bissau. A CPLP fala a uma só voz, exceptuando Timor-Leste que tem uma voz dúbia e uma atitude completamente desavergonhada.

As incongruências de Timor, ONU e CEDEAO

Acha que as posições de Timor-Leste, que considera dúbias, têm reflexos negativos no trabalho que Ramos Horta está a fazer como Representante Especial do Secretário-geral das Nações Unidas na Guiné-Bissau?

Completamente! Ramos Horta anda “aos papéis” na Guiné. Chegou com muita prosápia mas a tropa acalmou-o e ele baixou a bola. Mas eu alertei-o, numa carta que lhe enderecei no meu blog, para o que ia encontrar na Guiné-Bissau. Eu não tenho mais de 47 anos mas percebo mais daquele país do que qualquer um deles. Porque foi lá que sempre vivi, exceptuando o período em que estive fora a estudar. Agora, é bom que a CPLP pergunte a Timor-Leste qual é o seu papel na Guiné-Bissau. Na última reunião da comunidade, Angola propôs a manutenção das sanções, e a proposta foi aprovada. As próprias Nações Unidas, que mantém sanções à Guiné, chamam agora o presidente golpista para discursar na Assembleia-Geral. Isto é completamente incongruente.

A própria CEDEAO também é vista como tendo, em certa medida, legitimado o golpe de Estado…

A CEDEAO, num primeiro momento, condenou o golpe, mas no dia seguinte mudou de discurso, por causa da Nigéria que tem aquele quid-pro-quo com Angola. Costuma-se dizer que dois galos não cantam na mesma capoeira, e é o que acontece entre a Nigéria e Angola. A Nigéria quer fazer valer um estatuto de potência em África que já não lhe pertence porque não conseguiu conservá-lo. Hoje em dia, Angola tem mais força e mais credibilidade que a Nigéria, que além da corrupção generalizada, enfrenta todo o tipo de problemas, como o fundamentalismo religioso, o crime organizado e os grupos armados que matam, aterrorizam e assaltam petrolíferas. Se os nigerianos não conseguem resolver esses problemas internos irão resolver os problemas da Guiné? Não vão! Quanto ao Senegal, tem os independentistas de Casamança que lutam num território que era guineense, e nunca, tampouco, conseguiu resolver o problema, porque o exército senegalês veste saias. Não entra no mato para ir procurar os rebeldes. Fica na estrada a chatear os guineenses que atravessam a fronteira, assaltando-os e roubando-os. Tudo isto prova que, com a CEDEAO, os interesses da Guiné-Bissau não estão em boas mãos, e que, em contrapartida, a ajuda de Angola era uma boa solução para o país.

Disse há bocado que se dissociou do PRS de Kumba Yalá e da política guineense porque não queria pegar em armas. Pode-se dizer que a sua arma é o seu blog “Ditadura de Consenso”?

Exactamente. O meu blog é a minha arma, e a arma do PRS é uma ala militar que controla o partido. Na rua do Kumba Yalá em Bissau, a partir das sete horas da tarde, ninguém entra e ninguém sai. Está tudo guardado por tropas armadas com bazucas e kalashnikovs. Ele tem um exército paralelo, como tem a RENAMO em Moçambique.

Vamos voltar a sangrar

E as diferenças étnicas? Como é que funcionam na Guiné-Bissau e em que medida contribuem para esta permanente instabilidade do país?

Eu não gosto muito de falar de diferenças étnicas porque entendo que o guineense não as valoriza muito.

Mudo então a expressão para especificidades étnicas.

Isso foi dito ao António Indjai na Costa do Marfim. Disseram-lhe isso mesmo: a tua etnia, que constitui 80 por cento do exército guineense, é que está a rebentar com as Forças Armadas.

Está a referir-se aos balantas, etnia a que também pertence o Kumba Yalá…

Sem dúvida. São os balantas, mas nem todos. Eles é que estão a dar cabo das forças armadas e da Guiné-Bissau. Existem os do norte e os do Sul, que se diferenciam no nome. Os do Norte, por exemplo, têm no patronímico a partícula “na”, como são os casos de Tagma na Wai e Daba na Walna, e os do sul não. Mas eles têm os seus pactos, e a canalha anda toda junta. Os bandidos estão activos e estão para durar. Se não for feito nada, teremos outro golpe não tarda. Eu sei isso, vamos sangrar novamente.