terça-feira, 9 de julho de 2013

Reconciliação com líderes honorários


"O tal conhecimento empírico, de que falei no texto anterior, tem a natural tendência para a superficialidade, usando frases feitas e imbuídas de alguma carga emocional, mas completamente desprovidas do tal rigor necessário ao conhecimento científico ou académico.

Olhando par ao título deste texto, torna-se óbvio que pretendo falar da tão badalada e gasta (pela superficialidade com que é referida) reconciliação nacional mas, queria primeiro esclarecer alguns pontos sobre o conhecimento empírico e científico referido no meu último texto. Para me fazer entender melhor, vou dar um exemplo com que contactei diretamente na minha passagem pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) e vou usar o nome próprio, porque sinto-me na legitimidade de o fazer…

Julgo que qualquer estudante que passou pela FMUP nos anos 70 a 90 conheceu o Sr. Júlio do teatro anatómico. Era o exemplo perfeito do domínio do conhecimento empírico. Era o homem que dissecava e ajudava a alguns estudantes a dissecarem os cadáveres, expondo as estruturas anatómicas para as aulas práticas, estudo de preparação dos exames e exames propriamente dita. Portanto, de certeza que pouquíssimos alunos de Medicina, hoje médicos de várias áreas, conheciam melhor que o Sr. Júlio, as estruturas anatómicas e as suas relações quer no plano descritivo como topográfico. Mas, o que o Sr. Júlio não sabia e que os alunos de Medicina sabiam, ou tinham o dever de saber, era a constituição desses ossos, músculos, nervos e vasos sanguíneos, as suas funções e interações, para além de outros conhecimentos aportados noutras cadeiras.

O Sr. Júlio tinha o conhecimento empírico das estruturas anatómicas, como conhece de forma empírica, todos os caminhos que vão dar à sua casa, sem se preocupar com as particularidades da construção de tudo o que o rodeia. Mas, nós estávamos aí para aprender o conhecimento científico… O Sr. Júlio, não teve a sorte de um dia ser chamado para ajudar a retirar um órgão no transplante de um doente que viesse a falecer dias depois, mas teve o azar de ter tido um Regente da cadeira de Anatomia que lhe proibia sequer de esclarecer umas dúvidas aos alunos, ao que ele, dissimuladamente se furtava por vezes… Com jeitinho, de acordo com algumas “mentes iluminadas” da nossa sociedade guineense, até seria legítimo que o Sr. Júlio lecionasse Anatomia na Faculdade de Medicina da Guiné-Bissau, para não dizer ser Ministro ou Secretário de Estado da Saúde!

Mas passemos e com algum rigor, a tão badalada reconciliação entre os guineenses.

A reconciliação nacional não é a mesma coisa que o restabelecimento de relações entre pessoas desavindas ou casais separados! Antes de mais, não se pode falar de reconciliação nacional, sem antes libertar o país e o povo das garras dos opressores. Esse propósito é conseguido não só com organização de eleições consideradas livres e justas, mas também com uma verdadeira reforma no sector da defesa, segurança e essencialmente no aparelho judicial, garantindo a submissão do poder militar ao poder político e a proteção judicial dos culpados e das vítimas...

A verdadeira reconciliação nacional, seja ela em que país for, precisa de ir ao âmago da questão, tentando encontrar a verdadeira razão da desunião, identificar os culpados e as vítimas, conhecer os danos causados, as respetivas penas previstas na legislação do país e, até onde as vítimas são capazes de prescindir definitivamente dos seus direitos e compensações, face aos crimes ou outras ilegalidades cometidas contra elas.

Ora, uma verdadeira reconciliação entre os guineenses necessita de um aparelho judicial forte, um estado com algum poderio ou estabilidade económica e ainda o apoio e uma verdadeira colaboração e empenho dos líderes religiosos ou tribais do nosso país.

Nessa ótica, a reconciliação guineense teria de passar por um longo caminho, o que obviamente pesaria muito no erário público de um país em que a pobreza é uma realidade inegável …

Atrevo-me a afirmar, de forma empírica, que a reconciliação guineense deveria começar entre irmãos que um dia pegaram nas armas para travarem uma luta armada, contra um inimigo comum mas que depois, no seio da própria organização, se traíram, torturaram-se e mataram-se, conforme interesses pessoais, rácicos ou étnicos. Sabemos que alguns dos verdadeiros “n’bai luta” já não estão entre nós. Isso coloca a questão de julgamentos e perdões a título póstumo e a necessidade de, aqueles que ainda estão vivos revelarem a verdade e só a verdade, do que se passou durante a luta armada… Nessa sequência, é óbvio que tornaria necessário e desejável uma verdadeira reforma nas FARP’s, estrutura militarizada derivada da luta armada.

Depois dessa reconciliação no seio do PAIGC e das FARP e a reforma no seio desta, seria preciso que os autores dos vários golpes de estado se reconciliassem com as suas vítimas, com a confrontação judicial das várias famílias ou a título póstumo.

Ainda há outra dimensão de injustiças, violações de direitos individuais e crimes cometidos, secundários aos abusos do poder no aparelho do estado, derivados dos golpes de estado, que teriam de ser tipificados e classificados na moldura penal guineense, para que fosse possível o seu perdão ou o seu julgamento e ainda o devido registo na história do país.

Só depois dessa reconciliação entre atores militares e políticos, seria possível avançar com uma reconciliação, que de certeza exigiria menor esforço e menor gasto de recursos, que é a reconciliação do poder estatal com a sociedade civil e a reconciliação entre cidadãos e etnias desavindos.

Assistimos menções repetidas de amnistias e reconciliações com alguma ligeireza, típica do conhecimento empírico, apontando datas ou acontecimentos a partir do qual se deveria reconciliar ou amnistiar os guineenses! Os guineenses já se aperceberam que uma amnistia ou reconciliação a partir de uma determinada data ou acontecimento, seria apenas uma tentativa de ilibação de alguns criminosos pelos crimes cometidos no período que mais lhes interessa e não um uma verdadeira reconciliação do país com o seu passado, como promessa de um futuro risonho…

Até para apelar a reconciliação entre os guineenses é preciso algum rigor! Como gosto de pesquisar sobre “temas já conhecidos por todos” e aportar sempre algo mais ao meu parco conhecimento, julgo ser diferente daqueles que, ao andarem um dia de canoa num rio, julgam dominar a navegação marítima, podendo até aventurar-se na navegação oceânica!

Para terminar, tenho assistido a manifestação de estados de ânimos entre os guineenses, sobre atitudes e posicionamentos do Sr. José Ramos Horta, como se de um agente político guineense se tratasse! Peço a todos os guineenses, alguma moderação no julgamento precoce desse homem. Temos de pensar que a função do Sr. José Ramos Horta não é resolver todos os problemas da Guiné-Bissau, mas é apenas um homem mandatado pela ONU para determinadas funções na Guiné-Bissau, como poderia ser noutro qualquer ponto do planeta. Deixemos o homem fazer o seu trabalho, para depois podermos julga-lo no fim do seu mandato na Guiné-Bissau… Não podemos cair na tentação de ser igual aos golpistas, que interpretaram o posicionamento do Sr. Joseph Mutaboba a favor da legalidade constitucional e contra o crime organizado, como uma atitude de interferência na política nacional, declarando-o como “persona non grata”… Também, não são as imagens de ocasiões captadas com intuito de renovar imagens pessoais já gastas, que podemos interpretar automaticamente que José Ramos Horta é amigo da Guiné-Bissau e dos guineenses. Não é essa a função do Sr. José Ramos Horta e não vamos força-lo a sê-lo, só pela imperiosa necessidade que alguns têm de libertar o povo guineense da opressão em que se encontra ou apenas por imperiosa necessidade de autopromoção de outros.

A Guiné-Bissau tem de encontrar os seus verdadeiros libertadores entre os guineenses, assim como Timor Leste encontrou no Sr. José Ramos Horta, Xanana Gusmão, D. Ximenes Belo e outros os seus verdadeiros líderes. Precisamos de referências nacionais e temos de construí-lo entre nós. Não é com líderes honorários que encontraremos rumo para o país…

Jorge Herbert"