segunda-feira, 5 de dezembro de 2011
Grandes Guineenses pelo mundo - Carlos Lopes: «É preciso uma reforma muito mais profunda da forma como o poder está distribuído no mundo»
Natural da Guiné-Bissau, Carlos Lopes ocupou um dos cargos mais importantes da Organização das Nações Unidas (ONU), na mesma época do secretário-geral Kofi Annan, quando foi diretor da entidade. Hoje é subsecretário da organização, mas, mesmo assim, isso não o impede de refletir de forma crítica a respeito da função exercida pelos organismos multilaterais no mundo, em um contexto no qual todos estão em crise e discutindo reformas. Leia abaixo trechos da entrevista concedida por Lopes.
Fórum – Dentro desse contexto de crise, o papel dos organismos multilaterais está sendo repensado. Como podemos ver a função deles hoje?
Carlos Lopes – Do ponto de vista formal, todos os organismos multilaterais estão em crise. E todos estão falando em reforma: As Nações Unidas, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio, as agências especializadas. Todas admitem que há de fato um novo paradigma e que é preciso se adaptar a ele. Mas acontece que essas reformas são muito lentas porque são protagonizadas por consensos de países, muitas vezes com interesses divergentes, e cada passo é conquistado com bastante dificuldade. Há reformas que já foram feitas, por exemplo, hoje em dia é inconcebível que se faça uma grande conferência global, sobre qualquer tema, sem haver conferências à volta de organismos não governamentais, envolvendo a sociedade civil. Isso não era assim no passado. Mas ainda não é suficiente, porque se nós formos ver como é que as pessoas trabalham em rede hoje em dia, com acesso direto à informação, os organismos ainda têm alguma dificuldade em conseguir responder a essa pressão por participação. E outro problema muito grande também é decidir tudo por consenso. Parece uma coisa democrática, mas na realidade provoca uma série de dificuldades como se pode ver quando se discutem questões problemáticas.
Fórum – Em uma de suas falas, o senhor mencionou o papel da OMC, dizendo que ela seria, no papel, uma instituição mais democrática. Por que essa democracia não se efetiva de fato dentro da OMC?
Lopes – Há várias experiências de democratização do poder de decisão dos organismos multilaterais. A experiência talvez mais interessante é a da OIT, que tem uma participação tripartite, em que estão representados governos, sindicatos e organizações empresariais. E agora, mais recentemente, houve essa proposta de recriação da OMC, de tentar fazer com que houvesse um mecanismo de decisão em que o consenso é regra absoluta com a possibilidade de ser exercido o poder de retaliação, quando um determinado membro não cumpre as regras. Só que a forma de realizar a contestação e a forma de construir o consenso são completamente burocratizadas e levadas a um extremo em que só os mais poderosos é que decidem, talvez até mais do que numa situação que parece menos democrática, como por exemplo a forma de governar do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, mas que na prática acaba sendo pelo menos mais transparente, você sabe quem está votando o quê. Na OMC, passa-se mais ou menos igual, embora a composição daqueles que têm a influência seja diferente, mas os pequenos acabam por manter voz nas matérias apreciadas.
Fórum – Ou seja, para fazer esse modelo funcionar, precisaria desburocratizar?
Carlos Lopes – É preciso uma reforma muito mais profunda da forma como o poder está distribuído no mundo. Nós não estamos mais num poder que foi construído em 1950 ou 1945. Estamos num poder que tem a ver com a emergência do Sul, uma situação em que as quatro economias mais poderosas do mundo daqui a uns vinte anos vão incluir países do Sul, não só a China, mas outros. E, portanto, tem que haver uma distribuição das formas de poder. Embora se admita isso, há uma certa dificuldade em enxergar através daquele sistema das reformas muito lentas que eu estava explicando para você. Então começam a surgir alternativas fora do quadro institucional tradicional, como é por exemplo o surgimento do G20, uma demonstração de que o sistema tradicional não funciona. Então temos que criar uma coisa à parte, que responda às necessidades da tomada de decisão tal como ela se apresenta hoje no mundo.
Fórum – O senhor mencionou, em sua palestra, algumas alianças comerciais amplas que estão sendo feitas, envolvendo grandes parcelas da população mundial. Elas podem, ao invés de impulsionar reformas desses organismos, esvaziar o seu poder?
Carlos Lopes – Depende, a dinâmica é muito complexa e muitas coisas podem acontecer. Até as vésperas da primeira reunião do G20, quase toda gente pensava que o Fundo Monetário Internacional vivia a sua pior crise existencial e talvez não sobrevivesse a ela como mecanismo influente. Mas a reunião do G20 injetou 750 bilhões de dólares no FMI e alterou completamente o quadro. A dinâmica é muito difícil de prever.
Fórum – Essa crise também faz repensar um pouco a função do Estado na economia, já que observamos várias medidas restritivas no sistema financeiro e algumas estatizações em países como os EUA, que sempre foram adeptos do neoliberalismo. Pode-se dizer que o Estado está se remodelando?
Carlos Lopes – Com tendências keynesianas. Keynes foi o grande apologista de que o Estado tinha um papel no desenvolvimento e, de fato, isso acabou por se manifestar por uma palavra: regulação. Ou seja, dar ao Estado o poder de regulação. Só que o Estado fazendo regulação não é nada de novo, é o que sempre fez, ou fazia. Agora há tendências, em alguns países, de se retomar a dimensão pública do Estado. Na discussão sobre crises e oportunidades, é importante destacar que a dimensão pública do Estado tem que ser muito maior do que aquela que está sendo feita nesses países. O que na realidade fizeram foi mais salvar o sistema financeiro e os bancos do que propriamente reposicionar o Estado para ser um ator do desenvolvimento. O Estado tem que se concentrar nos bens públicos comuns e, dentro desses bens públicos comuns, a regulação é apenas um meio, não deve ser um fim. E como meio que é, deveria permitir que houvesse um maior controle das grandes fortunas, porque elas de fato chegaram a uma situação obscena em termos de concentração de renda. 82% da renda é concentrada num mundo dos 20% mais ricos, isso é uma situação insustentável.
Fórum – O senhor acha que existe possibilidade de as novas relações Sul-Sul serem baseadas também no que foi a relação Sul-Norte, ou seja, com alguns países sobressaindo e impondo seu modelo a outros? Ou pode surgir algo novo mais igualitário?
Carlos Lopes – Não, eu acho que infelizmente a natureza humana não muda só porque o país protagonista está mais ao sul ou ao norte. Nós estamos a ver uma nova configuração do mundo e essa nova configuração – que não é assim tão nova, porque ela existiu até 1920 e depois é que começou a alterar através do papel de países como a China, que sempre estiveram presentes na economia mundial – vai impor também uma maneira de ver o mundo que tem muito a ver com esses países do Sul. Eles vão ter mais influência, vão ter um lugar à mesa, mas isso não significa necessariamente que os outros também se podem sentar. Vai haver certamente uma tendência para falar em nome de grupos de países, sem necessariamente refletir todas as sensibilidades dos pequenos países, dos pequenos atores. Portanto é uma dinâmica que não tem apenas aspectos positivos, tem também alguns que podem vir a ser negativos, mas no quadro atual das relações, muito divididas entre Norte e Sul, podemos considerar que é uma evolução muito, muito interessante e sobretudo que permite enxergar novas oportunidades. Agora, depende de como as oportunidades vão ser utilizadas.
Fórum – Falando em oportunidades, na cúpula de Copenhague o papel das ONGs, dos movimentos sociais, das manifestações espontâneas, foi marcante. O senhor acha que a crise ambiental e a crise econômico-financeira dão uma oportunidade para novas articulações desses atores em nível planetário?
Carlos Lopes – Hoje em dia trabalha-se muito em rede. Mais uma vez, não é algo novo. Mas o que é novo é a forma como as redes se constituem, em uma velocidade muito mais rápida, graças às tecnologias da comunicação nas redes sociais e, portanto, a articulação das redes abarca um número de participantes que nós não conhecíamos antes. Para se chegar, por exemplo, a uma plataforma com milhares de participantes dialogando sobre o tema, como foi o caso de Copenhague, precisava de anos de laboração. Hoje em dia, essas articulações podem ser feitas no mesmo local da reunião. Quer dizer, o Estado coordena a reunião dentro da sala e, ao lado, ou junto, há milhares de pessoas fazendo lobby e influenciando a negociação. Portanto, essa capacidade de trabalhar em rede é completamente exponencial, não tem nada a ver com a realidade que nós tínhamos ainda há 10, 15 anos atrás.
Quando, por exemplo, houve a primeira Cúpula da Terra no Rio, em 1992, havia uma presença das ONGs, mas não tinha nada a ver com que ocorre hoje em dia com as organizações do meio ambiente. O FSM é uma demonstração dessa mudança. No entanto, a negociação formal para fazer tratados entre chefes de Estado continua completamente condicionada às formas tradicionais. E há aqui um déficit.
Uma parte da reforma da ONU não deveria ser só para aumentar o número de membros no Conselho de Segurança, tratar da questão do poder de veto, fazer com que haja uma maior importância das operações humanitárias, que se desenvolva uma forma coerente de desenvolvimento. Mas deveria ser também sobre como tratar da questão do método da negociação, porque o método hoje em dia não pode ser igual ao do passado, e essa discussão ainda não começou.
Fórum – Que tipo de contribuição o FSM deu e ainda pode dar em termos de novas saídas para a crise?
Carlos Lopes – A grande vantagem do Fórum é que ele é um espaço de ideias. A partir do momento em que tentar traçar uma plataforma única, perde força. Ele é um grande gerador de ideias, uma espécie de dínamo que permite que as ideias possam se fortalecer, ganhar adeptos e se transformar em redes de grande influência. Estou convencido de que nos últimos dez anos uma boa parte das transformações globais foi altamente influenciada pela dinâmica do Fórum, não tenho a mínima dúvida sobre isso.
Hoje em dia não se pode ignorar o poder da sociedade civil organizada. A sociedade civil sempre existiu, mas está agora organizada, estruturada, e o que é mais interessante é que ela não se estrutura em fronteiras nacionais ou regionais, articula-se em nível global porque é relativamente fácil fazê-lo pela internet e com os contatos que as pessoas têm e a facilidade de viajar, em termos relativos aos que tínhamos no passado, cria uma possibilidade de modificação enorme. Portanto, essa influência vai continuar, mas está se transformando também. Hoje em dia o Fórum Social Mundial não tem a mesma capacidade e visibilidade de mobilização que tinha nas primeiras edições. Mas isso não quer dizer que perdeu influência, mas sim que está em um processo de amadurecimento quando se começa a discutir mais políticas públicas. É uma discussão mais periclitante, incisiva, e influencia de fato as tomadas de decisão mais concretamente.
FONTE: AQUI
Sobre o entrevistado:
Carlos Lopes é doutor em História pela Universidade de Paris 1, Pantheon-Sorbonne, foi consultor da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciências e Cultura (UNESCO) e da Comissão Econômica das Nações Unidas para África (CEA). Integrou os quadros do PNUD em 1988 como economista do desenvolvimento. Em Janeiro de 2003 foi coordenador residente do PNUD no Brasil - país onde o PNUD aplica o seu programa mais importante. Em Novembro de 2005, foi nomeado director encarregado dos Assuntos políticos, Humanitários e de Manutenção da Paz no Gabinete do secretário-geral da ONU. Actualmente, o guyineense Carlos Lopes é Director Executivo da UNITAR (United Nations Intitute for Training and Research) e Subsecretário Geral da ONU. É autor de numerosa bibliografia sobre questões de desenvolvimento e estudos africanos e leccionou em universidades e instituições acadêmicas em Lisboa, Zurique, México, Uppsola e Rio de Janeiro.