"1. O estado de Bissau, dos prédios, das ruas, de quase tudo, é um espelho das impiedosas tragédias que se abateram sobre o país, umas a seguir às outras, desde 1998. A mais danosa, até pelos efeitos que acarretou para a cidade, em termos de destruição física, foi a guerra civil de 1998/99. Mas todas as outras deixaram sequelas a que não é estranha a desoladora aparência de Bissau.
É um exercício quase tão difícil como procurar uma agulha num palheiro encontrar no centro da cidade um edifício apresentável – como se deve chamar àqueles que se mantêm direitos, pintados e sem acrescentos de materiais desconformes com os originais, em geral para remediar emergências. Muitos, alguns de construção não muito longínqua, como o da Casa Escada, encontram-se em ruínas, a ameaçar ruína ou a caminhar para lá se nada for feito.
A guerra, entendida como acção em que se cruzam fogo e ferro, não é propriamente a causa do estado deplorável de Bissau. O palácio que foi dos governadores coloniais e depois passou a ser dos presidentes da nova nação, é praticamente o único que a metralha atingiu em cheio. Ficou sem uma parte do telhado. Assim permanece, esventrado, exposto a inclemências do tempo que devem cumprido a sua danosa sina.
São os chineses que o vão recuperar, provavelmente despojando-o da traça e do toque que lhe serviram de identidade, erigido ali, ao cimo da antiga Praça do Império. Os portugueses, vergados a complexos e sentimentos de culpa de que não se conseguem libertar, parece que não se mostraram interessados em prestar uma ajuda capaz de restituir ao palácio a sua altivez perdida.
Os escombros a que ficou reduzida uma ala do antigo Quartel General (QG) também representam outro “espólio de guerra”. A potente bomba que ali explodiu com o fito de matar o antigo CEMG, General Tagme Na Wae, foi a causa dos danos que o edifício ainda exibe. Ao assassinato de Tagme Na Wae seguiu-se, questão de horas, o do antigo presidente Nino Veira. A casa onde foi morto está direita, mas com vestígios de disparos de armas ligeiras evocativos das tribulações que a Guiné-Bissau tem vivido.
Depois há as ruas da cidade. E os passeios. O seu estado é igualmente tortuoso. Os carros, que os há desde carcaças milagrosamente andantes até imponentes “Hummer”, estes e outros de igual “estadão” instuitivamente associados ao rendoso negócio da droga, deixam à sua passagem nuvens de poeira. Quando a chuva começar a cair será lama. Os pavimentos das ruas e dos passeios estão esventrados ou simplesmente desapareceram.
Os ministérios, os serviços públicos, as escolas e os liceus, os quartéis seja de que forças for, tudo tem um ar decrépito onde parece que o tempo parou para se cumprir um castigo qualquer. Só no caso dos ministério parece que o panorama pode mudar. Na via rápida que liga a cidade ao aeroporto, há um edifício que chama a atenção pelo seu porte. Foi construído pelos chineses para albergar os ministérios. Já lá funciona o gabinete do PM.
2. Comparada com a cidade de há 30 anos, que o repórter conheceu, onde viveu e pela qual ganhou afecto, falta a esta a doçura e a relativa ordem da outra. De bom sobrou a paisagem humana. As pessoas continuam simples e de bom trato. E deve ser por isso que a cidade, hoje nitidamente mais populosa, c 300.000 habitantes, permanece tranquila. Nos noticiários não abundam crimes e excessos costumeiros nas relações humanas.
Os “velhos”, como aqui carinhosamente são chamados as pessoas entradas na idade – é de fazer figas para que nunca faça carreira o politicamente correcto de lhes chamar “seniores” – dizem que o pior mal da Guiné, uma espécie de saga, foi o consulado de Kumba Yalá, o excêntrico presidente, que por actos e palavras mereceu um lugar de honra no anedotário nacional.
Quando deixou a presidência, em consequência de um golpe palaciano ocorrido em circunstância provavelmente singulares em todo o mundo, Kumba deixou atrás de si um rasto de miséria. De origem étnica balanta, chefe de um partido de matriz igualmente balanta, Kumba balantanizou o Estado e, em especial, as Forças Armadas – constituídas por mais de 90% de balantas.
A balantanização trouxe na sua peugada tensões sociais e políticas novas, para as quais é preciso remeter parte considerável das causas das convulsões que vêm sacudindo o país – as últimas sob a forma de assassinatos e de um motim militar breve – apesar de tudo o bastante para afastar e prender o então CEMG, Almirante Zamora Induta, substituído pelo seu vice, General António Indjai.
Em Bissau diz-se que os CEMG se sentam “no lugar do morto”. O Almirante Zamora teve a “sorte” de não ter tido como destino a morte. Mas os seus antecessores não escaparam. Ansumane Mané, Veríssimo Seabra e Tagma Na Waie. Este foi o primeiro balanta a ocupar o cargo e com ele se iniciou o predomínio balanta nas fileiras.
Os balantas, mais numerosa tribo da Guiné-Bissau, consideram-se a si próprios como tendo tido um papel determinante na luta de libertação. Mas também consideram que depois da independência foram negativamente estigmatizados (o chamado golpe de Paulo Correia), em razão do que começaram a ser política e socialmente preteridos. Foi Kumba Yalá, também ele balanta, que começou a reabilitá-los.
Hoje em dia não só controlam as FA, como predominam no aparelho de justiça. Pouco na economia. O poder fáctico que o controlo das FA representa é um foco de tensões múltiplas. Muitas das tensões e disputas que atravessam a sociedade e o regime, têm imbricação, a montante ou a jusantes, com a originalidade que é o controlo das FA por uma tribo.
3. Quase nas traseiras do mastodôntico edifício construído pelos chineses para albergar os ministérios está um prédio que até há pouco tempo foi o Hotel Palace. A fachada chama a atenção por ostentar uma placa com o símbolo das FA angolanas. Em harmonia plena com a placa, num dos dois mastros colocados na frontaria flutua a bandeira de Angola e são de soldados angolanos as figuras que montam guarda ao edifício.
O antigo Palace, que Angola comprou ao seu proprietário libanês e este de bom grado aceitou vender, alberga hoje uma missão militar angolana, Missang, que tem por finalidade pôr em marcha e garantir a execução de um processo de reforma do sector de defesa e segurança, preparado pela União Europeia. No fundo, trata-se substituir as actuais FA, com todas as distorções que apresentam, em especial a sua matriz étnica, por um novo corpo militar, criado com base em critérios de aceitação universal.
Não é uma tarefa fácil. E há sinais disso. Em várias partes do país têm-se registado conflitos por posse ou usufruto de terras entre balantas e outras etnias – papeis, nalus, etc. As mais abalizadas interpretações acerca das ocorrências indicam que são sinal de agitação entre balantas, por pressentimento de que se aproxima um momento, o da reforma faz FA, em que perderão um instrumento de poder e influência.
Está generalizada a ideia de que a Guiné-Bissau tomará o rumo da estabilidade quando a reforma das FA for levada a cabo; ou, pelo menos, quando houver garantias sólidas de que o processo chegará a bom termo. Em lugar de umas FA representativas de uma tribo, com todas as perversões que isso arrasta para um país ainda de escassa coesão nacional, espera-se que surjam outras, diferentes.
4. A Guiné-Bissau tem potencialidades económicas suficientes para lhe garantir futuro se forem convenientemente aproveitadas. Grandes aptidões agrícolas para culturas como arroz, amendoim e caju. Cobiçados recursos pesqueiros (é nos Bijagós que desovam muitas espécies daqueles mares), cada vez mais expostos à pesca furtiva ou clandestina. Condições ideais para o turismo, com a vantagem de não estar muito distante de um grande mercado gerador, a Europa.
Regularmente a imprensa local anuncia a visita de empresários e missões empresariais estrangeiras. A última provinha dos países do Golfo. Mas também por lá têm peregrinado espanhóis, alemães, canadianos e portugueses. Regra geral vislumbram oportunidades de investimento. Mas, entre dentes, vão dizendo que preferem esperar por tempos mais promissores no plano da estabilidade política.
Deve haver uma coisa que os desaponta e recomenda cautela: é o estado desmazelado da cidade capital e, por extensão, de outras cidades, como a histórica e graciosa Bolama, quase transformada num montão de ruínas. No fundo, o que se vê não só é uma marca indelével das conturbações por que o país tem passado, como, por continuar assim, não inspira confiança que chegue em termos de futuro.
Quando a cara da cidade for outra, para melhor, então toda a gente há-de ler isso como sinal de “águas passadas”. A reconstrução do velho mercado central, arruinado há muito por um incêndio, mas que assim continua, terá significado equivalente ao da transformação das espúrias instituições do presente (e sua razão de ser) noutras mais conforme com o que o país precisa. Vitalmente.
*Por Xavier de Figueiredo, jornalista, que recentemente visitou a Guiné-Bissau.