Por: Ricardo Godinho Gomes
Nota do autor
O contexto à volta do qual se desenrola a trama d`Alimária é actual, inspirado nas estórias do dia-a-dia que acabam fazendo a História dos sujeitos- e dos povos que estes formam.
A trama inspira-se num universo africano, num qualquer país da África lusófona, a partir da segunda metade do século XX. Um narrador, a «Kykia », inicia-nos na estória. Pouco ou nada fala, sendo o olho que a todos observa. Dele, que se considera o vigia da natureza humana e dos seus mais profundos recantos, virá o cimento moral da peça. É ele quem nos introduz na trama e é ele quem, dela, nos faz sair sem jamais pretender nela participar ou se imiscuir. «Um vigia apenas observa, nunca adjectiva»; ele conduz-nos à «paradimensão»- ao subterrâneo- da natureza humana: introduz--nos na dimensão animal do Homem!
A política, como espelho das interacções que regem o tecido social, um dos expoentes desse tecido e da vida cultural dos povos, mostra-nos perfeitamente o caminho percorrido por estes e o caminho que ainda falta percorrer. A peça Alimária, escrita por Ricardo Godinho Gomes em 2000 e encenada por Miguel Hurst em 2001, analisa e problematiza o tipo de relação que liga os sujeitos e que acaba cimentar a idiossincrasia dos povos.
Os homens, na terra onde reinam as «alimárias» , por mais competentes que sejam têm que falar a linguagem animal para obter o direito à palavra e à existência. Têm de virar bichos! Caso contrário, são ou esquecidos-calados, amordaçados, silenciados…- ou eliminados.
É esse mundo do não dito, dificilmente explicável mas facilmente perceptível; de imagens que falam somente a meia dúzia de iniciados; da dramatização da vida e da tradição em algo que até hoje tem destruído os bons e preservado os menos bons dentre os homens; de toda essa outra dimensão da vida que deveria ser de apenas de alguns homens mas que tende a impor-se a todos os homens, numa África que luta para se manter ao passo do resto do mundo; é esse mundo das «alimárias» que motivou o autor a escrever a peça que é dedicada a todos os que tiveram os seus princípios e a eles se mantiveram fieis.
Excertos da peça:
Ami qui kikya!
Sou eu o vigia, a coruja que tudo vê e nada faz. Não me cabe a mim o papel do Jambakos, o adivinho que vê o futuro e afasta o mal... o curandeiro que se procura em caso de doença. Procuro na noite o amanhecer. Procuro... só para saber, saber que nasce sem falta o dia de amanhã. Como nasce? Ahm? Isso já não é comigo. Nunca foi, nem o há-de ser!
Apenas canto as estórias no meu grito; estórias de vozes que lamuriam na noite, da cantiga que nasce do amanhecer certo... para morrer num qualquer anoitecer incerto.
E quem em meu canto ouvir uma voz… Então escutou falar a ancestral língua das alimárias; os outros? Ah! Esses passearão as suas vidas pelos dia... que espero, claros de esperança.
Disse-me, à nascença, um velho vigia: «Carregam todos os Homens de Deus, dentro de si um animal... UMA BESTA!!!» Há os que o sabem e os que não o sabem e por isso, entre eles, uns vivem de noite e outros de dia… esquivando-se por entre as suas próprias sombras. Mas dentre todos eles, há sempre um que vive entre uns e outros, de dia e de noite.
Esse, tal como Aquiles… e muitos outros príncipes antigos, foi confiado ao centauro Quirão, para que este o alimentasse e o mantivesse sob a sua disciplina. Esse, por ter tido por preceptor um ser metade animal e metade homem há-de, sempre que houver necessidade, saber usar uma e outra natureza.".
Era, era?
Era certo...
Coitada de Tchoca...
Ela está ali, junto a Santchu, para trabalhar. Dar o seu melhor! Tchoca só pede uma oportunidade para o mostrar, ideias é o que ela julga ter por demais. Quer agir, pô-las em prática. Tchoca não o faz por mera ambição, é mesmo vontade de servir bem os seus.
Bem lá no fundo, Santchu admira o esforço da sua subordinada. Mas ele sabe que as verdades de sua terra ultrapassam as boas vontades de Tchoca, vão um pouco mais além das universidades dos brancos que ela frequentara; vão mais fundo na Alma das gentes. Ele sabe o que a sua directora de gabinete desconhece ainda: a sua terra não é fácil!
Santchu sabe que, com as suas gentes, é infinitamente mais importante aquilo que não se diz... e tão ilusório o que abertamente se diz. Tchoca um dia o há-de saber, Santchu sabe-o e isso o faz sorrir. (C)RGG