sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

3 – “Testemunho” de Filinto Barros: Maio/88, os lixos industriais

O chamado processo dos lixos industriais na Guiné-Bissau, que tem levantado uma certa polémica nos meios intelectuais internos e externos, nasceu do seguinte modo:

Recebi em audiência a sra. Adamo, natural do Benim, que era portadora dum projecto em termos gerais, com realce para a transformação de resíduos industriais oriundos da Europa e sua utilização como adubos e material de construção.

A proposta pareceu-me estranha, tecnicamente difícil de se realizar (...) desde cedo pressenti que a oferta era algo complexa (...) por experiência e por princípio desconfio de todas as ofertas e sobretudo quando envolvem somas elevadas. Estamos num mundo onde não se oferece nada sem ganhar muito!

De seguida a madame Adamo surgiu acompanhada dum italiano e duma suíça ou francesa. A audiência foi pedida atravês do protocolo da Presidência (...) não gostei do italiano. Puro comerciante, não tinha qualquer conhecimento técnico do produto que estava a vender. As informações que prestava eram superficiais, fruto de dados que lhe foram formnecidos no sentido de nos impressionar. Compreendi que estava a tratar com intermediários, agiotas, cujo único motor era o dinheiro. Estúpidos como sempre, estavam convencidos que os africanos eram todos iguais, portanto bastava umas promessas e pronto! Bom, havia a soma que um país como a Guiné-Bissau não podia deixar passar sem qualquer reacção.

(...) Nunca duvidei que se tratava de material tóxico. A Europa dos privados, a Europa do real, nunca oferece nada sem contrapartida (...) Tivémos várias ofertas e decidi reter duas que me pareceram mais aproveitáveis, não só no preço como nas condições a acordar. Devo dizer que o nível do preço retido era a melhor oferta na altura.

A seguir ao grupo da madame Adamo, veio o grupo do ‘palestiniano’. Trata-se dum libanês introduzido pelo embaixador da OLP. Como sempre é da Presidência que vinham os pedidos de audiência. A perspectiva neste caso era interessante no início, acreditando nas palavras do embaixador, que falava de mais de USD 100/tonelada. Entretanto a oferta do libanês não passava dos USD30/ton e além disso era um intermediário da madame Adamo!

O arquitecto Pierre Goudjabi, aproveitando da circunstância de ser ‘primo’ do Presidente, surgiu como elemento de ligação dum intermediário, sra. Leila, igualmente libanesa. Oferta baixíssima, uma autêntica brincadeira – foi logo rejeitada! Lembro-me da conversa do arquitecto que se mostrou admirado que marxistas estivessem a reivindicar tanto dinheiro! Isso passou-se na presença do ‘Nino’, no seu gabinete. Estupidez! Isso espelha o conceito quje em Dakar tinham de nós, os chamados marxistas de Cabral! O mesmo Guodjabi não desarma e surge desta vez acompanhado dum advogado francês radicado em Dakar. Muito paleio, oferta baixa – não deu para discutir.

Cabevi, Carlos Bernardo Vieira, Muridu, aproveitando igualmente da sua proximidade do Presidente, aparece como elemento de ligação dum grupo português com ligações nos EUA. Dei início às discussões com este grupo. Devo dizer que o grupo tentou secundarizar o Cabevi, substituindo-o pelo coronel (Alfredo) Moura, dos Armazéns do Povo. Assinámos um documento de compromisso com este grupo.

Foram estes os documentos que surgiram na imprensa portuguesa. Houve fuga dos documentos do Ministério e estou convencido que foi através do Adelino Handem, director-geral dos Recursos Hídricos. Basta dizer que a imprensa portuguesa tinha em seu poder os dois documentos assinados com as duas empresas (suíço/italiana e portuguesa/EUA).

(...) É este o conteúdo dos famosos acordos que o nosso amigo Handem colocou nas mãos dos jornalistas e dos esquerdistas de França. Penso que foi uma má atitude da sua parte e tive oportunidade de lhe dizer isso numa reunião e ele não recusou a acusação. Digo que pouco sério da sua parte, dado que desde o início ele foi envolvido como técnico dos recursos hídricos para supervisionar aqueles que iriam acompanhar os técnicos do laboratório VERITAS.

(...) Sabia que de técnico o Adelino Handem tinha muito pouco mas era ele o director-geral e não devíamos contorná-lo. Estupidamente, dominado pelo meio pedantista que frequentava, acabou por fornecer cópias dos contratos ao exterior. O secretismo da operação não era grande e não lhe foi difícil ter acesso pela simples razão de lhe ter sido facultado uma cópia do documento.

Podia tê-lo denunciado ao regime mas preferi não o fazer porque sabia que a reacção dos outros seria como sempre violenta. Preferi não dizer nada aos meus colegas do Partido.

(...) O Presidente ‘Nino’, é bom afirmá-lo, procedeu duma forma brilhante, pelo menos em termos formais. Remeteu todos os grupos que lhe surgiam trazidos por gente próxima dele e jamais interferiu nos nossos trabalhos. Pelo contrário, mostrou-se sempre apreensivo com as consequências da toxidade. É certo que o ‘Nino’ é muito inteligente e sabendo dos perigos, sobretudo do impacto político bastante negativo, era capaz de estar a fingir, procurando um bode expiatório. Ele não só tinha capacidade para estas manobras como igualmente estava rodeado de gente capaz de lhe aconselhar caminhos que lhe dariam salvaguarda.

(...) Fomos o único país que tratou do assunto duma forma clara e com todas as precauções científicas que se impunham. Em Addis Abeba, os políticos da OUA, tomados pela histeria da comunic ação social europeia, votaram resoluções contrárias ao processamento dos resíduos industriais no Continente (...) Eu estava aí para isso, mas inexplicavelmente não me permitiram assistir à sessão, ou sequer sair do hotel.


Continua