domingo, 7 de novembro de 2010

Amanhã conto-te o resto

CAPÍTULO I:

Olá, Christine. Hoje, vamos falar dele. Apetece-me, e sei porquê. Tu também sabes.

Ofereceste-me, pelos meus 41 ou 42 anos, não posso precisar agora, o livro do teu autor preferido, que, curiosamente, ou não, faz parte da minha lista de autores lidos: «O Retrato de Dorian Gray». O autor que fez e faz a tua cabeça. O autor que te levará, mais cedo ou mais tarde, para o caminho da auto-destruição. O autor que te faz fazer mal às pessoas próximas (eu acho, e aposto: não percebeste patavina do que leste no livro).

O autor que, dizes, conheceste por acaso: levaste a mão à estante de livros e foi o que te saiu. O primeiro que leste, tinhas 14 anos. Esse autor, famoso pelas suas atitudes anti-convencionais e, sobretudo - ou talvez? - por ter escandalizado o mundo literário da sua época - Oscar Fingall Wilde, o ícone, o santo graal da literatura inglesa.

«The Picture of Dorian Gray», do original, de 1891, o livro que me ofereceste (e que depois te devolvi, com três 'tiros' de spray vermelho na capa azul) é a sua obra-prima. Ou, se preferires, a mais intrigante.

Vamos por partes. No livro, as frases sucedem-se. Fui buscar estas:

- «Posso ser solidário com tudo, menos com o sofrimento. Tenho-lhe aversão. O sofrimento é hediondo, horrível, desalentador. Nessa simpatia moderna pela dor, há qualquer coisa de mórbido. O que se deve estimular é a cor, o belo, a alegria de viver. Quanto menos se iludir às tristezas da vida, tanto melhor.

- «Sempre há um quê de ridículo nas emoções das criaturas que deixamos de amar

- «Possivelmente, nunca parecemos tão à vontade como quando temos de representar um papel

- «O amor vive de repetição; e a repetição converte o apetite em arte. Toda a vez que amamos, é o único amor da nossa vida. A diferença de objecto não altera a unidade da paixão. Intensifica-a, simplesmente. Cada um de nós tem, na existência, no mínimo uma grande aventura. O segredo da vida é reeditar essa aventura sempre que possível

Esta é especialmente para ti:

- «De resto, o que mais lhe doía não era a morte de Basil (Hallward) - era a morte, em vida, da sua alma

Pois bem. É verdade: quantas vezes não passou pelas nossas cabecinhas aquela vontade de esganar pessoas, talvez numa tentativa de fazê-las acordarem dos mundinhos medíocres e banais onde vivem? Temos vontade de sacudi-las e obrigá-las a serem mais perspicazes. É quando nos damos conta de que a vida é assim, cheia de gente nojenta e plastificada, que nem mesmo o mais talentoso do cinismo ácido consegue alcançá-la.

Acredito e sei que existem pessoas com boa disposição para serem honestas, lúcidas e, acima de tudo, íntegras. Seres capazes de perceber a pequenez do Homem, porém, não se apequenando com tal coisa. São pessoas que reconhecem as suas próprias imperfeições, mas nem por isso se acomodam. Ser assim não me provoca nenhuma culpa.

Às vezes, as pessoas preferem silenciar o que pensam por medo de serem incompreendidas ou mal interpretadas. Ora, pensar assim, até certo ponto, parece-me sensato. Mas, se tomado como regra diária e geral, transforma-nos em cínicos e cobardes, seres incapazes de correr o risco de provocar, mesmo sem intenção, o desconforto e a antipatia de determinados grupos. Afinal de contas, só os tolos e inseguros tentam agradar a todos. Somente os ingênuos ou dissimulados agem assim. Porque não suportam (nem comportam) a ideia de não parecerem perfeitos.

Este é o teu retrato. O possível.

António Aly Silva

P.S. - Não sou nem nunca fui uma pessoa má. Até breve. AAS