segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015
CRÓNICA: Lembras-te de Bissau?
"Venham daí esses ossos!". Cruzámos por acaso, ia eu a atravessar a avenida em direcção à fortaleza da Amura. Abraçamo-nos, depois afastou-se e disse: "Olha só para ti, estás um homem!" Depois da constatação, outro abraço, ainda mais demorado. Este meu amigo, que era colega e amigo do meu Pai, costumava parar no bar 'Escondidinho', que fica na esquina da antiga escola "Marques Palmeirim", rebaptizada de "Combatente Desconhecido".
Chegava de sorriso aberto, ao final da tarde, depois de grandes caminhadas pelo dia e depois de noites que só ele sabia viver. "Já estou de abalada", ameaçava. Aliás, dizia isso sem ressentimentos nem temor. Começou a dizê-lo, contaram-me, ia nos quarenta. Durou mais trinta.
O 'Escondidinho» enchia-lhe as medidas todas e a sandes de linguiça era divinal. Bebia o seu tinto, conversava, rindo de riso breve, ouvindo histórias. Histórias como aquelas que ele próprio contava, algumas inventadas, mas sempre numa toada lenta e despedida de deselegância. Porém, vivia sempre o seu tempo.
O meu amigo adorava falar de mulheres - "na minha idade é que era, vocês hoje vão para a cama por tudo e por nada." E tinha razão. Estamos sempre a ir para a cama, de manhã, à tarde, à noite. Pela primeira vez ouvi-o falar da violência que dois palmos de terra podem gerar, dos ardores do sexo e de gente que se maltratava por um corpo quente de mulher. De gente que ele viu matar por um desvio de águas ou por causa de um dito mal interpretado.
Nesse encontro, dois anos antes da sua morte, ocorreu-nos muitas coisas. Contou-me que enviuvara fazia cinco anos. A mulher morreu na sala de operações, em pleno parto, por falha de electricidade. "Ninguém contava com aquilo, foi terrível." Fez-se um silêncio sepulcral. Não consegui olhá-lo nos olhos. Senti-me enfraquecido e a desfalecer e culpado por não saber o que dizer para confortá-lo. "Bom, pelo menos ainda temos o ‘Escondidinho’" - disse-lhe meu desajeitado. Pareceu-me confortado.
Assim que nos sentamos, pediu o seu 'pénalti' do costume e voltou a desabafar o que lhe ia na alma. "Os amigos morreram todos. Um a um; o Ucha, o Fernandinho, o Sampaio, o Zeca. O último foi o teu pai", disse-me. O meu pai morrera nesse ano, mais precisamente. Fiquei então a saber aquilo que anos a fio me apoquentava: ou seja, o que este meu amigo procurava no 'Escondidinho': Letrado, ele procurava a ração de afecto, os gomos de ternura, que, confirmou-mo agora, só a sua pacata e recôndita aldeia lhe poderia realmente oferecer.
Veio então à lembrança aa festa, a alegria que era quando ia ter com o meu Pai a esse bar. Era sobretudo a liberdade! Imaginei-os ontem, ali no 'Escondidinho', todos na mesma mesa, a beber mais do que manda a lei do equilíbrio; e, sobretudo ouvi-los a conversar muito e educadamente. Percebi então que este meu amigo percebera que perdera o tom da época; que a sua época era outra e que sobre essa época outra escrevera tudo quanto tinha de escrever. Porém manteve-se interessado. Pelo menos lia o que os outros escreviam - "tens boa pena. O teu Pai também tinha."
Certa tarde – contou-me o senhor Zé do 'Escondidinho' - o nosso amigo decidiu que chegara a hora de regressar à sua aldeia. Como a aldeia nem era assim tão longe e nem era propriamente uma aldeia, eles iam lá, vê-lo e conversá-lo. "Bebíamos agora um pouco e devagar", contou. O meu amigo, sábio e antigo, quedava-se agora no batente da porta, no silêncio da tarde, no silêncio de todas as tardes. "Já nem havia palavra, aliás", sussurrou-me o senhor Zé. Depois ergueu-se e, pausadamente, atravessou os umbrais da eternidade. António Aly Silva