quarta-feira, 19 de março de 2014
Recordar Carlos Schwarz
Intervenção de Eduardo Costa Dias, Professor do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, na cerimónia de homenagem a Carlos Schwarz promovida, em Lisboa, pela Fundação Mário Soares no dia 7 de Março de 2014
"Querida Isabel Levy
Caras amigas, caros amigos,
O nosso amigo Carlos Schwarz era um homem de leituras e de decisões amadurecidas. Pensava bem, escrevia, como o pai, muitíssimo bem, falava bem, e tinha frequentemente “grandes feelings” e “grandes, boas e ‘simples’ ideias”.
Nestas coisas, nas coisas em que o Carlos Schwarz se implicou ao longo da vida, ter ou não ter feeling e ter ou não ter boas ideias é, passe a linguagem de outra época, o separador que diferencia o “camarada funcionário” do “camarada dirigente”. O Carlos Schwrarz era um líder natural e um líder, no sentido próprio de cada um dos termos, por um lado, carismático e, por outro, culto.
Homem de muitas e ecléticas leituras e que, por maneira de ser, não planava sobre a espuma dos dias, nem ia a reboque de qualquer moda, Carlos Schwarz não era pessoa para prometer por prometer ou fazer por fazer.
De facto, para além de só se implicar em empreendimentos e lutas em que acreditava, o seu empenho, apesar da sua reconhecida generosidade e do seu lado “força da natureza”, era sempre o resultado de longas reflexões e, por vezes, atormentadas decisões.
Ponderava todos os prós e contras antes de decidir, procurava não ferir ninguém, cortava a direito sempre que o sentido do dever e a ética o exigiam.
Algumas ideias mestras configuraram o modus operandi do Carlos Schwarz desde 1975, ano do seu retorno à Guiné-Bissau, enquanto agrónomo, dirigente de uma instituição estatal, dirigente de uma ONG e interveniente — umas vezes mais explicitamente, outras menos — no debate das ideias e no combate político.
Tome-se o termo político, como Carlos Schwarz sempre procurou fazer, no sentido pleno do termo, muito mais vasto do que o da petite politique e a simples partidocracia.
Três ideias mestras reflectidas em outras tantas “causas gostosas”:
1- A ideia da segurança alimentar, reflectida na causa do DEPA - Departamento de Experimentação e Pesquisa Agrícola da Guiné-Bissau - um organismo público de que foi fundador e director, vocacionado para o aumento da qualidade e quantidade da produção do alimento base dos guineenses, o arroz, e para a procura da diversificação da produção agrícola.
2- A ideia da soberania alimentar, eixo fundador da intervenção da AD - Acção para o Desenvolvimento - e ainda hoje elemento estruturante à volta do qual se organiza a intervenção no terreno; ideia expressa nos combates pela defesa do direito inquestionável dos povos e das nações decidirem sobre as suas práticas agrícolas, pela agricultura de proximidade, pela protecção e recuperação das condições naturais de produção e pela estabilização dos direitos de acesso à terra por parte dos agricultores.
3- A ideia, aparentemente contra a corrente do que faz a AD, subjacente à construção do Memorial da Escravatura do Cacheu. Uma ideia assente na convicção de que a escravatura e todo o seu cortejo de humilhações e atentados à dignidade humana têm de ser, incontornavelmente, vertidos na construção da Nação.
Uma ideia complementada numa outra: a Nação, para ser uma ideia motivadora - a Nação para ser “A Nação” precisa de incorporar, para além dos traços únicos e distintivos dos diferentes povos que a compõem, os traços que, afectando mesmo longinquamente a generalidade dos cidadãos, venham de trás. A escravatura foram quatro séculos de atentados à dignidade humana, sofrimentos e humilhações generalizados à larga maioria dos povos da actual Guiné-Bissau.
Por último, a ideia mais directamente política, a ideia que deriva de uma longa reflexão sobre a questão da “compatibilização de agendas”. Ou dito de outra forma e de maneira bem menos eufemística , dizendo à Carlos Schwarz !, deriva da reflexão sobre quem, nas relações entre instituições do “norte” e do “sul”, deve e sobre quem não pode pilotar, nos seus diferentes níveis, a concepção e implementação das acções, por exemplo de desenvolvimento, a serem levadas a cabo no “sul”.
Esta ideia , ao contrário das três anteriores, não é “tangível” nem se dá a ver em especial em nenhuma das que chamei “causas gostosas” do Carlos Schwraz,” DEPA - AD - Memorial da Escravatura do Cacheu. Fazia parte da sua própria maneira de ser, fazia parte do longo combate que travou contra os abusos de poderes e que, sem qualquer espécie de dúvida, norteou toda a sua vida.
Para além da recordação afectiva, da memória dos seus empenhos e de “tudo o resto”, ficam, para o tempo presente e para o futuro, os escritos do Carlos Schwraz.
Ainda esta manhã estive a reler, com emoção, “A sombra do pau torto” (um texto auto-biográfico escrito em 2008) e a rever com deleite algumas das “análise da situação” que todos os anos iniciam o Relatório de Actividades da AD; cada uma destas análise de situação é, em si, uma fina análise política, no seu conjunto um testemunho eloquente da clareza das ideias e da sofisticação intelectual de Carlos Schwarz .
Querida Isabel fica certa, também para os amigos o Carlos não sairá tão cedo da sua memória.
Até sempre camarada
Eduardo Costa Dias
Lisboa, Fundação Mário Soares
7 Março 2014"