quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O passageiro adiado(*)

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Dafá Malamba é guineense, pintor da construção civil e não consegue levar para casa no fim do mês mais de oitenta contitos. Temos aqui um problema, pensou ele. Talvez emigrar, pensou ele outra vez. E, pensando, pediu o visto de abalada turística para Londres, onde vive um tio e uma caterva de primos.

Mas o tempo passava, a embaixada de sua Majestade não havia meio de se desengomar com o carimbo e Dafá desesperava. A ideia foi de «um grande amigo» cujo nome pede licença para não revelar. Afinal, se ele não ia roubar, mas procurar trabalho, se não ia viver na rua, mas em casa de familiares, que mal tinha se levasse o bilhete de identidade de um artista português? Mal nenhum, ora.

Da avaliação do risco à decisão de embarque foi um ai. E numa segunda-feira, pela frescura da manhã, aí está o nosso Dafá no Aeroporto da Portela. Na mão, o bilhete e o B.I. que o "transformava" de Dafá Malamba em José Petróleo da Silva... Parecia canja.

O agente do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) foi retirá-lo à fila dos viajantes-cidadãos da UE e perguntou-lhe se era português. Olha a pergunta, doutor. Portuguesíssimo e com muita honra.

O problema foi a falta de memória. José Petróleo de ocasião disse ter nascido em junho e não em julho como rezava o documento identificativo. Nem se recordava bem em que localidade nascera. "Foi a minha mãe que me tratou da papelada", garantiu. E sabe-se como há mães madrastas...

Aquela malta do SEF não brinca em serviço. Então o senhor tem aqui uma foto de bigode? Cortei-o, sr. doutor. E estava muito mais gordo quando tirou o B.I.... Tem razão, doutor, agora tenho comido menos, dificuldades da vida... Dificuldades que logo aumentariam com a detenção de Dafá, José durante tão breves e palpitantes minutos. No exterior do aeroporto, a família acenava ao avião no preciso momento em que o seu chefe seguia para os calabouços da PSP.

Dafé comparece em tribunal acusado de uso indevido de identificação alheia ou coisa que o valha. Em juízo, o guineense confessa o acto de que é acusado e o seu comportamento convence o meritíssimo de que não tem a exacta noção da gravidade do delito. O inspector do SEF confirma que Dafá, depois de apanhado, foi correcto e colaborou. O Ministério Público cumpre o seu papel com moderação e o oficioso advogado de defesa mete a voz para dentro ao pedir justiça.

O juíz não estava num dia de raiva. Lá fora, o sol ajudava e Dafá foi condenado em 20dias de multa a 600 escudos por dia, uma contrariedade de 12 contecos a juntar à interrogação do que fazer ao inútil bilhete de avião. "Agora veja lá, lute pela obtenção do visto e não se meta em mais trabalhos..." - aconselhou o juíz, em tom cordial. Por amor de Deus, excelência. Palavra de José, perdão... Palavra de Dafá.

António Aly Silva
(*) - Texto escrito em 1997, em homenagem aos nossos imigrantes.