segunda-feira, 1 de março de 2010
1 ano de mentiras, 365 dias de medo
Presidente da República em funções, eleito por voto secreto e universal, o General João Bernardo ‘Nino’ Vieira viu a vida ser-lhe tirada da forma mais brutal e inimaginável.
2 de Março de 2009.
(O Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Batista Tagmé na Waie havia sido morto às 19 horas do dia 1 de Março, num atentado à bomba quando subia as escadarias que dão acesso ao seu gabinete.)
Uma semana após o assassinato de ‘Nino’ Vieira, a Guiné-Bissau assistiu ao maior show-off da sua história feita de conflitos e derramamento de sangue. Numa manifestação popular promovida para condenar o acto, a palavra mais ouvida foi «Justiça». Eu mesmo cheguei a acreditar, pois nunca nos tínhamos unido tanto. Até o Procurador-Geral da República(!) de então, Luís Manuel Cabral, bradou aos céus espumando pela boca. Que não dormiria descansado enquanto não se descobrisse os autores morais deste crime hediondo – portanto, quem quer que tenha participado e patrocinado a chacina, tinha de pagar por isso. Acabou por levar um chega para lá e saiu com o rabo entre as pernas e nunca se conheceram os focinhos: nem de quem ordenou, nem de quem matou o Presidente da República! Nada. Zero. Kaput. Niente! (e haviam de continuar a matar).
Enquanto tudo isto se desenrola, o mundo civilizado assiste.
‘Nino’ Vieira, recebeu mais atenção na sua morte do que em toda a sua vida. Mas a julgar pela sua campa rasa e fria (funeral de Estado a quanto obrigas...), chega a dar a impressão de que o Presidente nunca existiu sequer. Foi uma aparição, e, tal como uma aparição...desapareceu.
Como chefe de guerra, ‘Nino’ lidou com balas tendo à sua volta uma cambada de cínicos e mentirosos; enquanto chefe de Estado, aturou traidores e oportunistas. E mais mentirosos. Gente que lhe empurrava e depois afastava-se e batia palmas. Enfim, escumalha que servia Deus e o Diabo.
Passados 365 dias, quem foi ouvido? Quem foi indiciado ou punido? Onde está a Justiça de que tanto se falou? Vão enganar brancos (que por sua vez estão fartos de nos enganar)!!!
Recuperei duas balas na poça de sangue e que terão certamente atingido um Presidente manietado pelos seus carrascos. Chegaram de madrugada – como convém aos bandidos. Mas, antes, trataram de mudar a guarda militar e a segurança. E regressaram depois por volta das 21 horas. Cinco viaturas todo-o-terreno – curiosamente, duas tinham matrículas do Estado... Entraram na residência do PR e saíram passados 20 minutos. Negociavam o quê? Sabe-se lá. Nessa noite, talvez por precaução, o ministro da Defesa dormiu numa residência particular na Rua 10.
E quando chegaram, fizeram-no com estilo: uma bazukada (convém aqui realçar que a maioria dos residentes vizinhos do PR, por sua própria iniciativa, haviam abandonado as suas casas na Rua de Angola, pois Tagmé Na Waié havia sido assassinado horas antes, no dia 1 e temiam-se represálias). Disparavam com intervalos – ora da rua de Cabo-Verde, ora da rua de Angola e a rua Marien N´Gouabi (traseiras da residência do PR) estava bem guardada. Falaram ao telemóvel toda a noite (ouvia-os claramente da minha varanda e da garagem, e ainda de três casas vizinhas).
Vi JM levar dois tiros (terão sido 3), e vi – confesso que fiquei embasbacado, um fiel do PR a querer à viva força penetrar no local de fogo. Não o deixaram. E ele, mais do que tudo, apenas não queria que fizessem mal ao seu amigo. Mas o mal já estava feito. Mataram-no a sangue frio.
Manhã cedo, lá estavam as duas cadeiras (sentaram numa o Presidente e noutra a mulher), um corpo sem vida jazia no chão frio, o braço separado do corpo, um quase-cemitério a céu aberto, o cheiro a sangue, um sangue espesso. Uma catana na poça de sangue. Havia – ainda estão lá! - um rasto de sangue que ia até a uma das casas-de-banho. Era do Barnabé – refugiou-se lá quando foi atingido. E havia pão e vinho e sumos na mesa. E também havia champagne. E ninguém chorava. Tudo era silêncio. Nessa noite, o Presidente dormira num quarto das traseiras, mesmo ao lado da copa – lugar onde foi assassinado.
Por volta das 4 e 30 da manhã, uma voz proclama ao telefone: «Está tudo dominado». E estava. E toca a pilhar - «queimem a casa», dizia um. Rebentaram os contentores e levaram tudo. O que não conseguiram levar, partiram. Oito da manhã. Um militar dispara um tiro contra o Hummer. Nervos? Ódio? Nada disso: ignorância animalesca.
Por volta das oito e meia, mais um gesto surrealista. Um militar acompanha quatro pessoas: duas eram advogadas, a outra o porta-voz do PR, Barnabé Gomes e ainda o chefe do protocolo, Adolfo. Mas Barnabé era o único que estava ferido. Tinha uma ferida enorme no braço. Dizem-lhes apenas «vão-se embora». Assim. Barnabé já nem sangrava, perdera muito sangue – fora ferido com os primeiros tiros. E estava a ficar branco, a fraquejar. E eu pergunto «têm carro para vos levar ao hospital?». Ninguém responde, mas eu reajo. «Entrem». Deixo-o no hospital, e levo, a pedido, um outro. «Deixa-me aqui, mas por favor não diga a ninguém». E deixei. E não disse nada. E deixei também dois maços de tabaco – uma cópia descarada de uma marca de cigarros norte-americano.
Pela manhã, quando tudo se tornara claro demais, os elementos da segurança do Estado - que resistiram ou desistiram de lutar, andavam de um lado para o outro com as mãos entrelaçadas e abanando a cabeça de um lado para o outro. Estavam resignados. O que podiam mesmo fazer, se logo no início houve militares que simplesmente abandonaram a residência, deixando a Kalashnikov no portão?! Sinal de que essa não era a sua guerra e, assim sendo, não pretendiam morrer lá.
Passados 365 dias, a Justiça continua calada e os assassinos e os mandantes deste crime sem paralelo no nosso País estão à solta. Passeiam-se pela poeirenta Bissau tentando apanhar mais alguns. Para matar!
O mundo todo condenou, tugiu e mugiu. E do mundo, nada chegou. Prometeram milhões e não deram sequer tostões. Ou seja, o branco não dá dinheiro e nós – pretos só como nós sabemos ser – estamos contentes porque assim não se investiga coisa nenhuma. Fica-vos mal.
Este é um apelo desinteressado, mas sobretudo isto é um grito de revolta contra o imobilismo e contra todas as mentiras que o Povo da Guiné-Bissau tem suportado. AAS - António Aly Silva