sábado, 15 de maio de 2004

Estou solidário consigo

Sr. Aly Silva,
Li o seu Editorial e estou orgulhoso por ser guineense e não por ser do PAIGC. Quanto à sua cor política, nao me importa (alias não sei e nem quero saber. Estou - estamos - solidários consigo e com o jornal e com o blog que dirige). Sedja (sedjas70@yahoo.com.br).

NR - Caro compatriota. Obrigado pelas suas palavras. Eu não sou do PAIGC (nunca fui), mas devemos, pelo menos, respeito ao partido que nos conduziu às independências. A nós, a Cabo Verde e a todos os países africanos de língua portuguesa. Vai dando notícias.
Abraço e bom fim-de-semana
Aly

sexta-feira, 14 de maio de 2004

Advertência para o guineense menos prevenido



ESCUTA!

Escuta!Toma atenção!
Escuta um som surdo que vem de longe
Escuta um tam-tam rítmico do tamborilar numa pele ressequida
Que vem de muito longe, de paragens longínquas
Das sagradas matas da Guiné

Escuta! Toma atenção!
Ouve o grito estridente de alguém gemendo
Escuta o orfar sem cadência de um peito cadente de amparo

Tam-tam é mensagem
Grito e desespero
Gemer é sofrimento
Amparo é para te proteger, Guiné

Escuta! Toma atenção!
Não é sonho, nem quimera - é realidade
O tam-tam anunciou nas suas mensagens que vêm de longe
Uma protecção especial para ti, Guiné!
E para os guineenses também

António Aly Silva

NADA NA MÃO, NADA NA MANGA, NADA NA CAIXA

À atenção dos cabo-verdianos que ainda não entenderam a história
1924, 12 de Setembro: Nasce em Bafatá, hoje Guiné-Bissau - 1945: Com uma bolsa de estudo, ingressa no I. S. Agronomia, em Lisboa - 1950: Termina o curso e trabalha na Estação Agronómica de Santarém - 1952: Regressa a Bissau, contratado para os S. Agrícolas e Florestais da Guiné - 1955: O governador impõe a sua saída da colónia; vai trabalhar para Angola; liga-se ao MPLA - 1956: Criação em Bissau do PAIGC - 1960: O Partido abre uma delegação em Conacri; a China apoia a formação de quadros do PAIGC - 1961: Marrocos abre as portas aos membros do Partido - 1963, 23 de Janeiro: Início da luta armada, ataque ao aquartelamento de Tite, no sul da Guiné; em Julho o PAIGC abre a frente norte - 1970, 1 de Julho: O papa Paulo VI concede audiência a Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos; 22 de Novembro: O governador da Guiné-Bissau decide e Alpoim Calvão chefia a operação de "comando" "Mar Verde" destinada a capturar ou a eliminar os dirigentes do PAIGC com sede em Conacri: fracasso! - 1973, 20 de Janeiro: Amílcar Cabral é assassinado em Conacri.
Os ventos da mudança sopravam já fortes em vários pontos de África, e nas ex-colónias portuguesas proeminentes líderes preparavam-se para os duros desafios que a história lhes reservara, criando organizações de vanguarda para dar corpo ao processo da luta de libertação. CABO VERDE E GUINÉ BISSAU tiveram a sorte de ter um líder invulgar, que idealizou uma frente comum, com objectivos claros e bem definidos, conseguindo assim atrair jovens de ambas as colónias para as suas fileiras.
Treze anos depois de uma luta difícil, em que muitos ficaram pelo caminho, incluindo o próprio genial líder, o saudoso AMILCAR CABRAL, erguia-se a bandeira da vitória, e os que partiram, sob o impulso de um ideal nobre, deixando atrás o seu projecto pessoal – eram quase todos estudantes universitários – para dar o seu contributo nessa prestigiante aventura, regressaram gloriosos sem nada na mão, nada manga, nada na mala, a não ser escassas peças de roupas, como é óbvio.António Aly Silva

Vão roubar para a estrada!

Lembro aos cabo-verdianos apenas isto: mais de 50% dos professores do arquipélago SÃO GUINEENSES; a aviação comercial - TACV - está pejada de PILOTOS GUINEENSES; a vossa Função Pública idem aspas, e, até as vossas forças policias (que até há bem pouco tempo usavam calções como fardamento) estão inundadas de guineenses, isto para não falar de jornalistas (que eu conheço alguns). O vosso jornal «Expresso das Ilhas» e outros são permeáveis ao poder político e o vosso primeiro-ministro não passa de um fantoche! Quem vos deu a independência, quem foi? E quem diz Cabo Verde bem pode dizer Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Moçambique. Na Guiné-Bissau, proclamamos a nossa independência nas barbas do poder colonial e fomos logo reconhecidos por uma centena de países. Nunca permitiríamos uma «instituição» como o Tarrafal! António Aly Silva

Cabo Verde tem problemas do «arco da velha»

Caro Aly! Após duas semanas inteiras de intensa troca de e-mail e comentários em vários sítios, com vários cabo-verdianos, e em especial após enviar um e-mail (espero que tenham recebido) aos editores e ao director (Apolinário Neves) do semanário Cabo-verdiano “Expresso das Ilhas” (www.expressodasilhas.cv), apraz-me registar que realmente há guineenses atentos ao seu país e da forma como somos tratados no exterior, que é no fundo o que interess.

Só nos afirmamos quando a nossa inteligência colectiva e a nossa capacidade de trabalho, reacção e pensamento colectivos, atingirem níveis que permitam que sejamos respeitados por sermos Gguineenses, e não apenas pelo que somos individualmente, tal como os americanos, os franceses são respeitados desde logo pela pátria e pela nação a que pertencem. Tendencialmente os guineenses são duros para com os patrícios e diplomatas para com os estrangeiros, mas a minha actuação foi na linha daquela que tiveste: dura, forte e feia, até porque não assimilei todos os valores ocidentais e nem é do meu interesse (pelo menos por agora) faze-lo; e por outro lado tenho um bom conhecimento e domínio de situação política e social de Cabo-Verde.

Garanto-te que têm problemas do arco da velha. Conseguem vender uma imagem imaculada ao mundo e nisso são patrocinados pelos portugueses (fiquei parvo quando numa das minhas visitas a Cabo Verde, me disseram que eles passaram a ter polícia judiciária a pouco tempo, porque constatei como actuavam aqueles homens incontroláveis).

Era pura e simplesmente impossível conter o instinto selvagem daquela gente, com brutalidade pura, e a isso assisti em Cabo Verde, mas nunca se fala nestas coisas. Foram considerados recentemente, tal como nós, um dos países em que a liberdade de imprensa regrediu, mas já veio o responsável pela associação dos jornalista dizer que não é verdade. Porém, a minha reacção começou antes do tal deputado Oliveira voltar a insistir com a questão da sigla PAIGC, porque uma semana antes lembraram de escrever um artigo depreciativo para a imagem da Guiné-Bissau, em que chegaram ao ponto de dizer que São Vicente não é nenhuma cidade de Bafatá, entre outras "bocas".

Sinceramente, orgulho-me de ter como compatriota alguém com a tua capacidade de resposta e, sobretudo, em tempo útil. Se um dia tivermos tempo falaremos sobre isso, e poderei enviar-te parte do meu longo diálogo com "essa gente". Mas sucintamente quero que saibas que deu-me um grande prazer ler o teu comentário e estou a ponderar voltar à carga enviando o link para eles lerem. Mas tu tens uma arma terrivelmente eficaz nos dias que correm, o teu jornal tem uma tiragem considerável, e o teu SITE é bastante visitado.

Uma reacção "MODERADA" para não assustar a clientela das ilhas seria interessante, se não te quiseres envolver pessoalmente, ofereço-me para assinar um artigo de resposta. Um abraço do Marcos Correia

Caro Marcos, fiquei radiante com o teu e-mail. Não terei – nem nunca tive – medo de responder, mesmo que atacando forte e feio quem quer que seja. É preciso que mais guineenses, onde quer que estejam, comecem a dar respostas certas e na hora àqueles energúmenos que hoje se fazem passar por gente decente. Abraço e vai mandando coisas. António Aly Silva

PROTESTO! PROTESTO! PROTESTO!

Mas protesto o quê??? Sei lá!!! deve ser o hábito muito lusófono de por
tudo Protestar...

PROTESTO! PROTESTO! PROTESTO
O quê não sei... sei lá... Já sei!!!!!

PROTESTO NÃO HAVER MAIS BLOGS COMO ESTE.
Meu caro LoucoConsciente... não pares... e não deixes que te calem.

Um grande abraço

Lobitino Almeida N'gola

Em Cabo Verde não caiu um invólucro


Em Cabo Verde, estalou o verniz. Diz-se hoje à boca cheia que o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) deve retirar a letra «C» do seu nome, uma vez que se trata de dois países diferentes, independentes. É verdade que o partido em Cabo Verde, outrora PAIGC, mudou o nome para PAICV. Tratou-se pura e simplesmente de um oportunismo político, bem visto de resto, tipo «agora que nos deram a independência…toca a mudar»

Devo dizer-vos que sempre sonhei com esta polémica. E agora que ela estalou, vamos parti-la aos bocados. Devagar, que é da maneira que sabe melhor. Para que conste, a sigla PAICV nem deveria existir. E porquê? Olha a pergunta, doutor! O PAICV quer simplesmente dizer Partido Africano para a Independência de Cabo-Verde… Nha mãe!!! O PAICV também lutou para a independência de Cabo Verde? Não sabia…

Devo recordar aos agora pavões e dirigentes do PAICV que chegou a ser planeada a integração económica entre a Guiné-Bissau e Cabo-Verde (estava tudo estudado, só faltou o «preto no branco») e tal só não aconteceu porque houve o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, daí resultando o corte de relações com o arquipélago assim como a ruptura do partido, até então força dirigente dos dois países.

Aliás, lembro-me bem quando Samora Machel, o malogrado presidente de Moçambique, tomou a iniciativa de fazer as pazes entre os dois países e, mais tarde, «Nino» Vieira e Aristides Pereira acabaram por restabelecer as relações diplomáticas. Estávamos em Julho de 1982 e o acordo acabou por ser assinado em Maputo, capital de Moçambique.

Que fique claro, caros cabo-verdianos: o PAIGC foi fundado em 1956 e vai fazer 49 anos. Só espero que amanhã, na altura de apagar as velas, não venham dizer que o «vosso» PAICV também tem 49 anos, como o PAIGC… O PAIGC, não fará finca pé e não retirará uma letra que seja à sua sigla até porque não se pode reinventar a roda e muito menos mudar a história…isso era no tempo do estalinismo…

Agora, só para chatear…por que razão existe então uma medalha Amílcar Cabral? Que eu saiba, Cabral nasceu na Guiné-Bissau e não em Cabo-Verde e, assim, deviam ter vergonha e se calhar mandar cunhar uma medalha para homenagear os vossos emigrantes que são quem, de facto, continua a sustentar a vossa economia… Mais? Ok, venha daí: Cabo Verde já chegou a ser considerado «um dos maiores exportadores de madeira» e isto só dá mesmo para rir… Madeira? Só se for a imitar rochas… Meus caros, mais vale cair em graça do que ser engraçado.

Quanto aos dois países - e porque não aos outros PALOP? - deixo aqui este sentimento de orgulho: a Guiné-Bissau é o país que mais contribuiu para as independências dos PALOP; é o país africano de língua portuguesa com maior número de quadros e o mais bem representado junto dos organismos internacionais (o representante do secretário-geral da ONU no Brasil - um dos maiores países do mundo - é o guineense Carlos Lopes; o segundo homem do Banco Mundial para África é o guineense Paulo Gomes) e isto só para citar alguns. Vão apitando que eu cá estarei para avivar a vossa curta memória. Embrulhem! António Aly Silva

quarta-feira, 12 de maio de 2004

O Anónimo

Olhos denunciando cansaço
Músculos flácidos de tanto pelejar
Rosto enrugado marcando traços de dor, de sofrimento
Dentes cerrados, ferro preto emperrado
Firmeza, certeza no objectivo escolhido
Cabelo eriçado, despenteado, sem tempo
Eis o teu perfil de ontem, combatente anónimo

Objectivo escolhido, objectivo atingido
Olhos vivos denunciando vitória, alegria
Músculos reafeitos denunciando fim à guerra
Firmeza, certeza não na guerra, mas na luta
Na paz duramente conquistada
Reconstrução Nacional é outro objectivo, lutando
Eis o teu perfil de hoje, combatente anónimo

Neste dealbar de nova era, novos tempos, nova vida
Rodeado de crianças felizes e saudáveis
Tu, combatente anónimo de cabelo grisalho, mas penteado
De rosto enrugado marcado pelo tempo, mas sem sofrimento
Qual general conselheiro das guerras do Antanho
Já não és anónimo, és combatente da liberdade
E herdaremos o teu perfil amanhã

Requiem para Zé Carlos*


As melodias que deixaste...
A simpatia que conquistaste...
O sofrimento que curtiste...
Fazem de ti, saudoso poeta, aquele que não morre

Em jeito de agradecimento
Deixamos escrito nos nossos corações:

Valor igual, musical, não conhecemos!

As tuas canções rasgaram as trevas de muitas mentes
Lá no eterno, onde descansas, terás luz e perdão!

* José Carlos Schwartz foi o pioneiro da música moderna guineense. Morreu com 29 anos, num acidente de aviação no aeroporto de Havana, Cuba, onde era adido cultural da embaixada da Guiné-Bissau

Emigrante

No moderado mês de Março, não apareceste
No calor Escaldante de Maio africano, também não
E muito menos na noite fria de Dezembro

Perguntei, disseram-me que emigraste
E que no estrangeiro os ossos deixaste

Advinho que foram as saudades que te atormentaram
E te empurraram para o esquecimento eterno
Longe de tudo que é teu, és um corpo anónimo
É assim, às vezes, a vã esperança de um emigrante

segunda-feira, 10 de maio de 2004

A saudade ainda mora aqui

Anos '80. Bissau fervilhava de entusiasmo e a cidade ainda ostentava o título da mais limpa capital da costa ocidental de África. Todos os amigos da minha geração viviam em Bissau. Na altura havia torneios e campeonatos de basquetebol no ringue do Banco Nacional e de ténis no Alto Bandim. Aprendia-se karaté, jogava-se bilhar na sede da UDIB e dominó no café Império. Convivíamos com malucos como o Jacob e o Eustáquio, enquanto que o governo os escondia dos visitantes, anestesiando-os primeiro antes de os atirarem para as caixas abertas das carrinhas, rumo ao que agora resta do hospital 3 de Agosto (antigo hospital Militar).
Hoje, a outrora Praça do Império – rebaptizada de ‘Praça dos Heróis Nacionais' (este nome no entanto caíra desde logo em desuso), era o local de encontro de todos os namorados de Bissau e arredores. Era, de resto, o local da capital onde havia mais meninas bonitas por metro quadrado. Era normalmente aqui onde as miúdas davam resposta aos pedidos de namoro e, por que não dizê-lo, o local que escolhiam para ‘calçar os patins' a esses mesmos namorados. Valia tudo, menos arrancar olhos.
Também frequentávamos a ‘bolanha' dos coqueiros, caçando pássaros e pescando, fugindo da catana do ‘Nho Morna' – isto já para não falar dos peixes que ‘pescamos’ na residência do embaixaor de Portugal em Bissau. Fizemo-lo apenas por pura traquinice, diga-se em abono da verdade. Volvidos muitos anos, Bissau hoje está acabrunhada. Perdera o título da mais limpa e ostenta agora sabe-se lá o quê (a mais escura, suja, desfigurada - escolha o leitor).
Nas bolanhas, quantas vezes não paramos para apreciar o espectáculo lindo que era ver as ‘badjudas' nos seus trajes menores, lavando roupa ou aguardando a sua vez para, da fonte, acarretar água. Porém, Bissau hoje não existe para além do mapa e alberga 400 mil almas revoltadas, cada uma com a sua dor.

sábado, 8 de maio de 2004

O ‘outro' terrorismo

De cada vez que o mundo é sacudido pela canalha, todos acordamos e lançamos a perpétua dúvida: porquê o terrorismo? Mas, o que é, de facto o terrorismo? E porque são apenas aqueles actos bárbaros, pagos com sangue de inocentes, rotulados de terrorismo?
Apoiar ditaduras camufladas é TERRORISMO, alimentar com dinheiro quem o suporta é TERRORISMO; gastar 10 milhões de dólares em casamentos quando nesse país centenas de crianças morrem diariamente de fome é TERRORISMO. Delapidar um Estado, desviando milhares, dezenas de milhares, centenas de milhões de dólares, é TERRORISMO. Acolher ditadores é TERRORISMO assim como tolher a todo um povo o direito à Educação o é; é TERRORISMO apoiar ditaduras, derrubá-las e colocar no seu lugar outras ditaduras. É TERRORISMO matar uma pessoa, 200 pessoas, 10 mil pessoas, 100 mil pessoas. É TERRORISMO a ingerência militar, é TERRORISMO a pena de morte. É TERRORISMO aterrorizar! É TERRORISMO matar. Inocentes ou não.

Fecha o teu guarda-chuva

Fecha o teu guarda-chuva, oh viajor
Deixa que o sol africano raie o seu calor
E a chuva regua esta terra sagrada onde nasceste
Fecha o teu guarda-chuva, viajor
Serve-te dele como um cajado
Para não mais seres colonizado
Não importa que o sol te queime
E a chuva te molhe
Tu que por ironia nasceste sofredor
Faz do teu guarda-chuva um cajado e defende-te
E deixa que o sol raie e a chuva regue
Este solo pátrio-africano que é todo teu

sexta-feira, 7 de maio de 2004

Preito de singela homenagem (aos meus avós)

Bissau, um mês qualquer entre Maio e Outubro. Choveu toda a manhã. Podia ouvir a chuva bater nas vidraças das janelas e até o murmúrio secreto das pessoas. E sentia o agradável odor do café que a minha Avó preparava todas as manhãs. E só hoje me dei conta de que todas estas pequenas coisas são coisas boas. Desejava chegar aos domingos só para ouvir o ruído do fogão a petróleo (o gás ainda era um sonho…) e, sobretudo, a minha Avó a conversar baixinho com o meu Avô. Conversavam acerca do correr dos dias e lembravam-se do tempo em que eram jovens em flor. Daqueles dias exaltantes, dos bailes de rua e de salão. «Foram bons tempos, esses», acrescentava o Avô. O meu Avô é um homem pequenino e de mãos bonitas, bem talhadas de resto, pese embora todo o trabalho que suportou durante a sua longa vida. Ainda mantém uma voz fina, bem modulada. Usava um chapéu branco que, com o passar dos anos, apresentava-se todo remendado com arame fino que ele, pachorrentamente, desfiava dos fios de electricidade. Ria muito e com frequência e recusava boleias. O pretexto era sempre o mesmo: «a melhor receita para envelhecer com dignidade é caminhar». E lá ia ele todo pomposo, rua abaixo. Também dizia, a propósito de viver muito (contava na altura cerca de 70 anos), que chegara a essa idade porque «gostara muito de mulheres. Ainda gosto, claro. Gosto mas já não posso, se é que me faço entender» - o meu Avô teve 21 filhos. Bebia um cálice de whisky por semana, aos domingos, e de um só trago embora se mostre um perito no assunto. «Só se deve beber entre e com amigos. Quando um homem bebe só, algo está mal, algo não vai bem dentro dele». E finalizou com esta frase lapidar: «quem bebe só está a conviver com a morte que lhe mora na alma»… A minha Avó (que já morreu) gostava muito do meu Avô. Gostava mesmo muito e dizia-lho sorrindo enlevada (ou embevecida?), não sei bem. E ele manifestava o seu contentamento afagando-lhe as mãos e beijando-a com suavidade. «Quando a gente não gosta, não deve ocultar os sentimentos e muito menos as emoções». Escutava-os feliz e adormecia no seu colo como uma criança que quer saber coisas sobre as estrelas. Hoje, o meu Avô tem a respeitável idade de 101 anos e vive em Aveiro.

"Faz mal ao coração"... (À atenção dos políticos da Guiné-Bissau)

"Faz mal ao coração testemunhar de perto o sofrimento deste povo pacifico, tolerante, generoso, simples e digno. Os sonhos e expectativas da gloriosa luta pela independência ficaram adiados no tempo, numa realidade de extrema pobreza, de degradação da sua parca vida. No entanto, perante esses sofrimentos e humilhações que lhes foram infligidos, este povo simples e humilde sempre reagiu com muita dignidade e tolerância extrema. Na Guiné-Bissau a coexistência de muitas etnias e religiões sempre deu mostras de irmandade, de respeito e aceitações mutuas, de inter ajuda e solidariedade. O povo da Guiné-Bissau ressalta como exemplo de irmandade num mundo de conturbados conflitos étnicos e religiosos, pelo extremismo e fanatismo religioso." José Ramos Horta, prémio Nobel da Paz e ministro dos Negócios Estrangeiros de Timor-Leste 05 Maio 2004